“Anora” não é nossa inimiga: entenda o PL 778/2025

Se você acompanhou o Oscar e torceu fervorosamente pelo Brasil quando concorremos em três categorias (Melhor Filme e Melhor Filme Internacional com Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles, e Melhor Atriz com Fernanda Torres), deve ter ouvido falar no filme Anora, dirigido por Sean Baker, e na atriz Mikey Madison, concorrentes do Brasil e vencedores das categorias Melhor Filme e Melhor Atriz.

O filme Anora retrata os dilemas da jovem Anora, uma trabalhadora sexual da região do Brooklyn, nos Estados Unidos, quando em uma noite aparentemente normal de trabalho, descobre que pode ter tirado a sorte grande e recebido a oportunidade de mudar seu destino: ela acredita ter encontrado o seu verdadeiro amor após se casar impulsivamente com o filho de um oligarca, o herdeiro russo Ivan. A notícia se espalha pela Rússia e logo o seu conto de fadas é completamente destruído quando os pais de Ivan entram em cena, desaprovando totalmente o casamento.

A frustração sentida por muitas brasileiras com essa premiação foi além do nosso orgulho nacional e do nosso senso de justiça – afinal, finalmente um país do sul global estava concorrendo e tendo chances reais de ganhar as categorias mais importantes da maior premiação de cinema da história. Muitos comentários repudiosos se dirigiram ao filme Anora e à atriz Mikey Madison. Oras, como assim um filme que conta a história de uma prostituta ganha de um filme que conta a história de uma mulher que resistiu aos horrores da ditadura militar do Brasil?

“Quero aproveitar este momento para reconhecer a comunidade dos profissionais do sexo. Eu sempre serei uma amiga e aliada. Incentivo as outras pessoas a serem também”.
Mickey Madison em seu discurso no BAFTA

Produções que retratam a vida de prostitutas em seus trabalhos, suas desilusões e conquistas pessoais, abrem espaço para o debate e reconhecimento do trabalho dessas mulheres. Mas a leitora deve estar se perguntando “e o que nós, mulheres brasileiras (provavelmente não prostitutas), temos a ver com isso?”, bom, veremos a seguir…

Você já ouviu falar do PL 778/2025? É sabido que os passos de alguns grupos de pessoas são mais vigiados do que outros, afinal, todas nós, mulheres, e pessoas pertencentes a outros grupos dissidentes e/ou marginalizados, sabemos na prática que o direito que menos temos garantido na Constituição de 1988 é o mais básico possível: o de ir e vir. O espaço público não é um espaço em que mulheres são bem-vindas, isso é fato: somos assediadas, nossa segurança está sempre em risco, as estruturas físicas e espaciais não são planejadas para nossos corpos, inclusive, sofremos mais com a crise climática que assola nosso país em calor.

O Projeto de Lei nº 778 de 2025, protocolado por Kim Kataguiri (União Brasil-SP), altera o Decreto-Lei n° 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais), para prever a contravenção penal de prostituição em via pública. A justificativa do deputado é a seguinte: emboooora ele reconheça que a prostituição, ou o trabalho sexual, é uma profissão regulamentada pelo Ministério do Trabalho e Emprego, seu exercício deve obedecer determinados parâmetros legais, garantindo que a liberdade dos demais cidadãos seja igualmente respeitada e protegida pelo ordenamento jurídico, ele ainda diz que nas grandes metrópoles brasileiras é comum que bairros residenciais sejam tomados pelo exercício da prostituição em plena via pública, muitas vezes em frente a residências familiares.

Ainda na justificativa, o argumento principal é que, ainda que a legislação penal vigente não tipifique tal conduta [da prostituição] como crime, o mero exercício da prostituição em vias públicas interfere diretamente no direito de locomoção dos demais indivíduos, para ele, na prática, essa ocupação representa uma privatização do espaço público por pessoas que não possuem alvará ou qualquer outra autorização legal para tal fim, simplesmente se apossando das vias públicas, impactando milhares de famílias e comerciantes que arcam com altos custos de IPTU e demais tributos para residirem ou trabalharem com tranquilidade.

Quando analisamos o projeto nos deparamos com uma série de palavras-chave muito utilizadas pela extrema-direita para defender seus interesses e atacar os de grupos marginalizados: a defesa da família, da liberdade e, inclusive, da economia. Carol Bonomi (@carolbonomi_), doutoranda na UNICAMP e pesquisadora de trabalho sexual, destaca que os argumentos do deputado são infundados, tendo em vista que não são só as trabalhadoras sexuais que não pagam IPTU, comerciantes ambulantes, motoristas de aplicativos, artistas de rua também não pagam — isso não quer dizer que a vida desses trabalhadores em seus ofícios é fácil, porém, apenas as prostitutas são passíveis de serem criminalizadas ao utilizar o espaço público. Além disso, Carol destaca que essas mulheres, como qualquer outra pessoa cidadã, movimentam a economia do país: pagando aluguel, transporte, alimentação. A pesquisadora ainda diz que se a preocupação é com a tributação, a solução é regulamentar o trabalho sexual, e não criminalizá-lo.

Carol também compara o projeto de lei com a lei da vadiagem, um dos principais instrumentos para criminalizar e monitorar mulheres pobres, negras e LGBTQIA+, pessoas sem moradia e sem trabalho fixo. Com o tempo, essa repressão criou zonas de confinamento e fortaleceu a violência policial. Ela argumenta que essa mesma lógica está sendo usada para criminalizar ainda mais o trabalho sexual, aumentando a perseguição, controlando corpos, impondo moralidades sob o pretexto de segurança pública, e atacando os direitos de todas as mulheres, não somente das profissionais do sexo — afinal, como pretendem identificar quem é prostituta e quem não é?

Você percebe que quando nós, feministas, nos distanciamos de grupos que estão à margem dos direitos políticos e sociais, esses grupos são alvos fáceis de projetos como esse? Se nós não nos fortalecermos e não nos apoiarmos mutuamente, quem vai? Quando pensamos no trabalho sexual, temos de ter em mente que é exercido majoritariamente por mulheres negras e pobres, mães e avós, que pagam suas contas e cuidam de suas vidas e suas famílias honestamente.

Se você quer saber mais sobre os direitos das trabalhadoras sexuais, o que vem sendo discutido e quais lutas estão travando ultimamente, recomendo que acompanhe nas redes sociais mulheres prostitutas feministas, como Monique Prada (@eu_moniqueprada) autora do livro Putafeminista (2018), Lady Brigitte (@diariodabrigitte) e Svetlanna (@svetlanna.xo). Conheça o trabalho de coletivos que atuam na defesa das trabalhadoras sexuais, como o Coletivo Puta Davida (@coletivoputadavida), fundado por Gabriela Leite em 1992, uma das prostitutas ativistas mais influentes do Brasil, e o coletivo Mulheres da Luz (@mulheresdaluz_). Assista também o curta documentário Amores de Rua (1994) dirigido por Eunice Gutman, disponível no YouTube.

Fonte: MUBI. Na imagem: Gabriela Leite no documentário Amores de Rua (1994), com a legenda “na nossa sociedade, uma filha não é bem-vinda neste mundo”, traduzida do inglês.

Giovanna Chistoni é estudante de Ciências Sociais na USP. Fez iniciação científica em Ciência Política, pesquisando a introdução do voto feminino na América Latina. Possui interesse em estudos de gênero e feministas, com foco nos direitos políticos femininos e semanalmente escreve sua coluna Mulheres e Política para o Hora do Sabbat.

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