A cada conquista feminina, a sociedade responde com uma nova exigência. Parece um cabo de guerra silencioso, onde cada direito arrancado do sistema vem acompanhado de uma prova de resistência. Como se o mundo quisesse saber até quando vamos aguentar antes de desistir e voltar pra cozinha. Antes de largar tudo — o diploma, o emprego, a liberdade — pra cumprir o papel que eles ainda esperam de nós: o da mulher calada, doméstica, disponível e grata.
Eles não nos queriam na política. Nem nos palanques, nem nas fábricas. Quando entramos, exigiram que fôssemos duas, três, cinco. Que déssemos conta de tudo, sozinhas. Que equilibrássemos filhos, boletos, saúde mental, marmitas e unhas feitas. E ainda sorríssemos. Porque agora, segundo eles, temos “direitos iguais”.
Mas igualdade que não prevê cuidado não é equidade.
E liberdade sem rede de apoio é só mais uma forma de opressão disfarçada.

artificial via ChatGPT (OpenAI)
No início do século passado, o mundo ouviu as primeiras vozes femininas ecoarem nas ruas. As sufragistas exigiam o direito ao voto — não como um favor, mas como cidadania. Na França, Simone de Beauvoir denunciava a armadilha que transformava o feminino em destino biológico. No Brasil, em 1932, as mulheres conquistaram o direito de votar. Mas só algumas — as letradas, as “aceitáveis” — entraram na urna.
Aos poucos, rompemos as paredes da casa. A Segunda Guerra Mundial empurrou mulheres pro mercado de trabalho. Depois, tentaram empurrá-las de volta. Mas já era tarde: o caminho estava aberto, ainda que estreito. Nos anos 1960 e 70, as feministas queimaram sutiãs — não por odiar roupas íntimas, mas por recusar as amarras invisíveis que o mundo insistia em impor. Queríamos o direito de existir com liberdade — no corpo, na maternidade, na profissão, na escolha.

gerada por IA via ChatGPT.
Chegamos aos anos 2000 como a geração que “venceu”. Estamos na universidade, no mercado de trabalho, nas eleições. Somos mães, chefes, líderes de movimento. Mas estamos também adoecidas. Porque o sistema que nos prometeu igualdade nos entregou acúmulo.
A mulher do século XXI tem CPF ativo, diploma na mão, jornada 6×1 e uma mochila invisível nas costas. Cuida dos filhos, da casa, da saúde mental da família. Paga metade das contas com quem ainda acha que lavar um prato é “ajuda”. Precisa de creche, escola de qualidade, segurança pública, saúde reprodutiva. Mas o que encontramos é um Estado surdo, omisso, que nos lança ao mundo como se fôssemos super-heroínas — ou, no fundo, como se quisesse que fracassássemos.
Porque quando a sociedade nos nega cuidado, o que ela oferece é castigo.
E o cansaço é uma forma moderna de silenciamento.
Falar de equidade sem falar de cuidado é uma armadilha.
Não basta permitir que a mulher saia de casa. É preciso garantir que ela possa existir fora dela sem se desintegrar. Que a criança tenha escola. Que a mulher tenha tempo. Que a família seja responsabilidade de todos — e não apenas dela.
Mas o que vemos é uma geração inteira de mulheres que tem tudo, menos paz. Que conquistou voz, mas precisa gritar o tempo inteiro pra ser ouvida. Que pode escolher, mas paga caro por cada escolha.
E enquanto isso, os homens que dividem os boletos ainda não dividem a carga. Sentam no sofá, abrem a cerveja e dizem que agora “tá tudo igual”. Mas não tá.
A verdade é que a mulher que venceu continua sozinha.
Não porque não lutou — mas porque o mundo não lutou com ela.
Porque a cada passo que damos à frente, o patriarcado inventa uma nova forma de nos testar. De nos empurrar de volta pro lugar onde nunca mais queremos caber.
A linha do tempo que começou no voto ainda não terminou. Mas hoje, ela passa pelo burnout — e pela urgência de reinventar o que chamam de liberdade.

Fernanda Azevedo se reconhece mulher, filha da mãe, filha da puta e a puta que pariu outra mulher. Taurina com ascendente em Escorpião, Lua em Peixes, distraída e controladora. Às vezes, se perde pelo caminho e deixa pedrinhas, estilo João e Maria. Escreve quinzenalmente sua coluna aqui no Hora do Sabbat
Uma resposta
Adorei seu texto!
Tão real, atual e importante!
A mochila invisível de nós mulheres do Mundo atual pesa tanto mas, não é validada pelas pessoas, afinal ninguém vê.
Quem aguenta firme é nomeada guerreira sem que ninguém pergunte se ela quer estar na guerra e a que reclama é ingrata e/ou fraca.
Estarei aqui acompanhando sua coluna!