O festival que se apresenta como “o carnaval do conhecimento” terminou exposto por uma cena de repressão e racismo institucional no coração do Recife.

Recife, 16 de outubro de 2025. O que deveria ser uma celebração da cultura e da inovação pernambucana terminou em uma cena de violência institucional.
Durante o Festival Rec’n’Play, a advogada e produtora cultural Jéssica Jansen foi abordada com violência por agentes da Polícia Militar enquanto trabalhava na coordenação do evento, no Paço Alfândega, às margens do rio Capibaribe, no centro histórico da cidade.
Mulher preta, periférica e mãe solo, Jéssica estava fardada, com crachá e rádio de coordenação. Atuava como produtora geral do festival e acompanhava o grupo Sujistência, trio de rap de Igarassu que havia acabado de se apresentar com músicas sobre racismo e violência policial.
Aproximadamente 90 minutos após o show, os artistas foram cercados por policiais. Ao tentar intervir e se identificar como advogada e produtora do evento, Jéssica foi empurrada, teve a bolsa revirada e o celular arrancado das mãos por uma agente.
“Eu estava completamente identificada e, mesmo assim, fui tratada como uma ameaça. Ser uma mulher preta, periférica, advogada e produtora cultural é viver em constante prova de legitimidade. A arte negra não pode ser celebrada no palco e violentada no mesmo espaço onde deveria ser acolhida”, declarou.
De acordo com reportagens do Marco Zero Conteúdo e do LeiaJá, não foi o único caso de truculência policial registrado durante o Rec’n’Play. Houve diversas abordagens violentas em diferentes pontos da cidade, especialmente após apresentações de artistas negros.
O festival, conhecido nacionalmente como “o carnaval do conhecimento”, reuniu milhares de pessoas em ações de música, tecnologia e economia criativa — mas terminou deixando uma marca amarga na cena cultural recifense.
Jéssica não foi levada à delegacia e recebe atendimento psicológico oferecido pela secretaria de Juventude e Igualdade Racial da capital pernambucana. “Enquanto uns me empurravam, outros tentavam me proteger. Pessoas que eu nem conhecia filmaram, chamaram ajuda, registraram. A cicatriz que fica é a certeza do racismo institucional, até dentro de um evento que promove inovação e diversidade.”
A vereadora Jô Cavalcanti, ex-codeputada pela mandata coletiva JUNTAS, 1ª mulher sem-teto e camelô eleita pelo MTST, e pré-candidata ao Senado por Pernambuco, manifestou-se publicamente em solidariedade à Jéssica Jansen. Em sua declaração, reafirmou o compromisso de lutar contra o racismo institucional e pela proteção das trabalhadoras e trabalhadores da cultura, defendendo a cultura como direito, e não privilégio.
A jornalista e produtora cultural Lenne Ferreira, da Aqualtune Produções e fundadora do Portal Afoitas, também se posicionou com um manifesto em vídeo, exigindo o fim da repressão policial aos trabalhadores da cultura. No registro, Lenne denuncia o excesso de violência da PM durante o festival e convoca o público a defender a juventude preta e o movimento hip hop, lembrando que “a cultura é território de vida, não de medo”.
Enquanto a rede cultural se mobiliza em apoio a Jéssica, cresce o debate sobre a ausência de protocolos claros entre festivais e forças de segurança pública. O caso levanta uma questão urgente: como garantir que a cultura, o lazer e o direito à cidade sejam vividos com segurança por quem os constrói?
O caso também configura violação das prerrogativas profissionais de uma advogada, um direito garantido por lei e protegido pela Ordem dos Advogados do Brasil. A Comissão de Prerrogativas e a Comissão de Direitos Humanos da OAB-PE acompanham a repercussão do episódio, reconhecendo a gravidade da conduta policial.
O episódio de Jéssica Jansen escancara a contradição entre o discurso de inovação e a prática da repressão.
Em um país onde corpos negros continuam sendo alvo de suspeita — mesmo quando vestem o uniforme da produção cultural —, o festival que deveria celebrar a criatividade terminou revelando o abismo que separa a festa e o Estado, a arte e o medo.
A cultura não pode ser vigiada.
A arte não pode ser criminalizada.
E o corpo que produz cultura não pode continuar sendo tratado como suspeito.