(Se possível, dê o play na música ao iniciar a leitura. Se preferir, ouça durante a
pausa proposta no texto)
Eu sei, assusta. Eu também tenho medo. Como é que se a fala disso que nos inquieta? Disso que nos revira profundamente, atravessa as entranhas, contorna o estômago? Eu também não sei, mas é por isso que estou aqui, para descobrir. Adoraria ter as respostas, mas por enquanto só as perguntas me visitaram.
Respostas surgiram em outros momentos, despretensiosas, a partir de perguntas não feitas por mim, mas das quais escutei entendimentos lá no fundo do silêncio. Há quem chame de canalização, intuição, sopro. Quando isso me acontece sinto o topo da cabeça formigar, meu chakra da coroa ativo. Por vezes meus braços também se arrepiam, outras até mesmo a espinha. Parece-me mais fácil captar as respostas para perguntas vindas de outras pessoas-universo. É como se meus olhos estivessem diante da vista no alto de uma montanha. Águia.
Este lugar interno que acabo de descrever vou chamar de ‘conhecido’. Temos uma certa intimidade e não me assusto quando chega. Até gosto, sabe? Houve um tempo em que me espantava, com um quê de admiração. Agora me sinto segura aqui, nos seus braços. Virou meu aconchego, o meu lugar preferido.
Precisei pausar aqui, neste ponto do meu pensamento, para buscar um afago no meu pé de alecrim, meu corpo me pediu por isso e eu atendi. Se o seu lhe pedir por algo similar, atenda.
Ouça por um instante.
Pause e respire profundamente pelo menos cinco vezes.
Se sentir, feche os olhos.

Volto para este outro lugar, do qual quero falar mas que ainda me é misterioso, eu apenas o imagino, sinto seu cheiro suave mas ainda não posso pegá-lo com as mãos. A ele chamei ‘desconhecido’ e algumas vezes se
apresenta como assustador para mim, ainda sem conseguir sentir a admiração que me visitou da última vez. Por enquanto, apenas aquele mesmo medo que mora entre finais e inícios se apresentou. Não, apenas o medo não. A curiosidade também o acompanha.
Quero nomear o que pretendo: exercitar minha vulnerabilidade. Abrir-me diante do nosso encontro, meu e seu, meu com a vida. De guardas baixas, desfeita dos muros e das proteções, intenciono colocar-me diante da vida inteira, não meio-viva, meio-inteira ou parcialmente presente. Déa Trancoso, cantora, compositora e pensadora exuniana, nos diz Radicalmente Viva.
Venho, então, exercitar a possibilidade de ser receptiva, com a abertura necessária para me relacionar pro-fun-da-men-te com esta e qualquer outra atividade que virei a adentrar, observando suas reverberações. Digo
reverberações porque afeta toda a vida, afeta a forma como me deixo ser atravessada pelo que a vida me propõe. Do físico ao invisível, tudo pode afetar-se quando se faz a escolha de estar inteiramente viva.
Dito isto, recomeço: Certo dia, iniciei a escrita do que seria esta minha segunda publicação, ela falava sobre a relação entre estar vulnerável e cantar, entre a energia vital e a energia sexual. Anotei palavras-chave, mapeei um pouco o assunto. E então perdi. No meio da minha mudança de casa, perdi. Quando abri novamente os documentos recentes, não estava lá e em nenhum lugar. Foi desafiador mas desapeguei e agora tudo o que temos é esta vulnerável segunda tentativa (quão mais sincrônico poderia ser isso?).
Pois bem, escrever, dançar, cantar, criar, desenhar e toda atividade que possa vir em mente nas quais estejamos colocando nossa alma, nosso prazer, nossa alegria, nossa força criadora, nossa paixão, nosso tesão, tudo isto é um ato de desnudar-se (primeiro para si mesmo). E ficar nua diante do que não se conhece, nua de verdade, em plena luz do dia, sem meia luz, sem nenhum escurinho para proteger não é tarefa fácil, muito menos obrigatória. Atreve-se quem quer, quem fareja ir por essa trilha.
Não acredito que se possa arrancar bruscamente as proteções, ainda que se tenha essa ilusão. Assim como o sexo exige intimidade, desejo de mergulhar no outro, e o gozar exige soltarmos o ego, dissolver o eu conhecido e sob proteção, caminhar pela trilha criadora radicalmente viva é um processo de entrega tântrico e minucioso, de uma costura feita com linha fina que acontece muito próxima à coluna vertebral.
Ao observar esse meu atual jeito de pisar no chão e caminhar, de pensar e agir, e até mesmo de cantar com essa voz que conheço, compreendo que esta sou eu após alguns movimentos desse desnudar-se e da transformação inescapável e inerente a sua dança, a qual vivi com calma, gentileza e com tempo. Tempo para ir relaxando e enraizando. Decidi adentrar com mais calma e hoje escrevi com a nudez que me é possível. Um pouco mais da minha pele onde estão escritas todas as minhas histórias se revela, e alterna o despontar
com meus pensamentos, com meus medos e anseios, e cada pedacinho que me compõe.
Nessa espécie de dança nua acompanhada de um véu enigmático, braços e pernas se mostram. O abdômen, os seios, o sexo, bailam transparecidos pelo véu. Os olhos talvez sejam os últimos a serem revelados tão diretamente, ou talvez os próximos, não sei ao certo a ordem.
O que sei é que sempre será uma surpresa, sempre.
E que Sempre será.
É contínua, a dança.
É Espiralar.

Dadona é artista LGBT, cantora, compositora e bacharela em Música Popular (UNICAMP). Professora de canto desde 2011 e pesquisadora em corpo-voz-expressão. Integra o grupo Kundengo. Lançou “Madrugada Chegou”(2019). Em 2025, prepara seu segundo álbum.
Uma resposta
Que lindoooo!! Vitalizar-se – é mais sobre aceitar a vulnerabilidade, desnudar-se para permitir enxergar-se tal como é, do que se fortalecer como valor em si, que texto vivo e real! parabéns amiga!