Mesmo sendo fundamentais na história, elas seguem invisibilizadas nos bailes, nas letras e nos bastidores
O funk é uma das manifestações culturais mais expressivas das periferias brasileiras. Além de ritmo e dança, carrega discursos sociais, disputas por território e afirmações de identidade. Ainda assim, quando se fala sobre a história do funk, as mulheres raramente aparecem como protagonistas, mesmo sendo elas que sustentam o movimento em muitos territórios.
Invisibilidade histórica
As mulheres estão no funk desde sempre, mas não são lembradas com o mesmo destaque que os homens. Elas foram (e são) apresentadoras de bailes, radialistas, MCs, dançarinas, DJs, produtoras e articuladoras. No entanto, por conta de um cenário dominado por homens e marcado pelo machismo estrutural, seus nomes foram sistematicamente esquecidos ou reduzidos a estereótipos.
Esse apagamento é visível na cobertura da mídia, nas programações de grandes festivais e nos catálogos de pesquisa acadêmica. Mesmo com o crescimento de artistas como MC Dricka, Valesca Popozuda e Tati Quebra Barraco, que abriram caminhos com letras empoderadas e presença de palco marcante, a maioria das mulheres do funk segue atuando nas margens da visibilidade. Além da exclusão histórica, mulheres do funk enfrentam obstáculos concretos em sua atuação profissional. Muitas relatam dificuldades em conseguir espaço em bailes, assédio de contratantes e produtores, falta de investimento em suas carreiras e julgamento constante por sua aparência e forma de expressão.
O ambiente ainda é majoritariamente controlado por homens nos bastidores, na produção musical, nas rádios e nos selos. Isso limita a autonomia das artistas, além de restringir a diversidade estética e temática que o funk pode atingir. Letras com críticas sociais, sexualidade sob a ótica feminina e vivências periféricas femininas nem sempre recebem o mesmo incentivo ou engajamento.
Experiências da Baixada Santista
Na Baixada Santista, onde desenvolvo uma pesquisa jornalística e audiovisual sobre mulheres do funk, é evidente a contribuição de figuras que movimentam a cena há décadas. São mulheres que ajudaram a organizar bailes em comunidades, criaram conexões entre MCs e rádios, produziram conteúdo nas redes sociais e se mantiveram atuantes mesmo sem retorno financeiro ou reconhecimento institucional. Além de muitas terem o peso de carregar o movimento nos ombros, conciliando carreira, maternidade, trabalho informal e militância cultural. Elas atuam como pontes entre gerações, acolhendo e incentivando outras mulheres a entrarem na cena com autonomia e segurança.
A escuta como prática política
Ouvir essas mulheres é reconhecer que suas trajetórias são parte essencial da cultura funk. O trabalho que desenvolvo com a produção da websérie sobre o funk feminino na Baixada Santista (Sons de Conflito, disponível no Youtube), parte desse princípio: a escuta como ferramenta de reparação e registro. O objetivo é documentar histórias que nunca foram contadas oficialmente, valorizar saberes locais e propor novos olhares para a história do funk.
Dar protagonismo às mulheres do funk é, também, refletir sobre quem controla a narrativa cultural no Brasil. Quando falamos sobre representatividade, estamos falando sobre poder; quem pode falar, quem pode ser ouvido e quem tem os meios de registrar sua memória.
O funk não é um espaço neutro. Ele reflete as estruturas da sociedade: racismo, sexismo, desigualdade social. Portanto, mudar a forma como o funk feminino é tratado passa por políticas públicas, fomento à cultura periférica, acesso à profissionalização e cobertura midiática mais justa e qualificada.
Funk é potência, e o protagonismo das mulheres dentro dele precisa deixar de ser exceção para se tornar regra. Ao ampliar essas vozes, estamos contribuindo para uma cultura mais democrática, diversa e verdadeira com sua própria origem. Então, se pergunte: quantas mulheres funkeiras da minha região estou ouvindo?

Raphaella Santucci é jornalista, e trabalha no jornalismo musical da Baixada Santista, com foco no funk. Criou a websérie Sons de Conflito e já atuou em redações, eventos e projetos culturais, sempre valorizando a música e a cultura negra.