Meu cabelo acontece 

tinha de haver uma receita

um truque

mãos mágicas

que pudessem, sem dor

alinhar as curvas do meu cabelo

desanelar.

tornar liso, reto, escorregadio

e então poder soltá-lo sem risos

ou olhares

mexê-lo, amarrar  alto

rabo de cavalo

um coque

fazer uma franja

eu gostaria

um cabelo liso

livre de piadas

que depois de lavado

secaria ao sol, no calor

sem medo

apontamentos.

não temeria o volume

sacudiria os fios

gritaria

deixaria que tocassem

que admirassem

meu cabelo liso.

sem raízes

pronto pra fotos

visitas e festas

esquinas, ônibus

igreja, padaria.

eu não sofreria

falaria abertamente sobre cabelo

indicaria produtos, fórmulas

cabeleireiros

e me manteria nas conversas

certa de que ninguém 

tramava disparates.

o meu cabelo não incomodaria

as colegas na escola cessariam

bucha, assolan, bombril

as lojas se fartariam 

frasco e rótulo

e eu exibiria com gosto

as linhas retilíneas do meu cabelo.

apostariam em meu futuro

um azul promissor

oceânico

sem os danos que me impeliram

mas tem que molhar, marrar

guardar.

se possível, esconder.

mas eu sonhara

queria pode ser

sem o peso de negar

a mão que me formou

o suor batido

raízes

sem a contramão 

de preferir o outro a mim

descartar um vocabulário

que abre fendas

à prova de tampas

rolhas, capas, portas

uma parte danifica-se

porque o desejo que impera 

é o branco casto e puro

que estampa no rótulo

alegrias e promessas

um falso prazer

que vez em quando

me espia, me acende

e reporta-me 

num tempo úmido

em que respirar doía

e dançar noutro tom 

era cena de filme

um desvio já calculado

por isso, impensável

num mundo sem espaço

apertado, ofegante, duro

ditando as regras

altivo e claro

sobre quais partes de mim

eu teria que escolher.

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