Nise da Silveira: Pioneira da Psicoterapia Ocupacional no Brasil

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As doenças mentais e comportamentais constituem um dos aspectos mais complexos da saúde  humana. Até hoje elas conferem um caráter estigmatizante aos seus portadores e levaram, no passado, a concepções primitivas de suas causas que eram atribuídas a influências sobrenaturais. Mesmo hoje  em dia encontramos, frequentemente, pessoas que acreditam que os pacientes não têm interesse em  sua própria cura, como se os sintomas pudessem ser remediados apenas com a vontade do paciente.  Todas essas concepções levaram, principalmente nos países mais pobres e culturalmente atrasados, a  criar hospitais onde os pacientes mentais eram submetidos a tratamentos desumanos que não levavam 

à sua cura ou melhora. Nessas tristes condições os doentes mentais eram internados em manicômios  onde eram submetidos a tratamentos cruéis e, muitas vezes, a abusos e violências. Uma importante  contribuição para a melhoria desse triste estado de coisas no Brasil foi o resultado do extraordinário trabalho da médica e pesquisadora brasileira Nise da Silveira.  

Família, escolha de profissão e política 

Nise da Silveira nasceu em 15 de fevereiro de 1905 em Maceió (AL), filha do professor de  matemática e jornalista Faustino Magalhães e da pianista Maria Lídia da Silveira. Muito jovem, aos  16 anos entrou na Faculdade de Medicina da Bahia sendo a única aluna na turma formada apenas por  homens. 

Conclui o curso aos 21 anos e volta a Maceió por um breve período, quando, infelizmente, ocorre a morte prematura do seu pai. Com dificuldade de exercer a medicina, principalmente por ser  mulher, decide-se então a ir para o Rio de Janeiro (1927) onde, morando no bairro de Santa Teresa, estabeleceu suas raízes intelectuais e profissionais participando dos meios artísticos e literários. Em  contato com Otávio Brandão, farmacêutico e pensador, e sua esposa, alagoanos moradores no mesmo  bairro, entra em contato com os grandes ideais socialistas que floresciam nessa época. Otávio era  filiado ao partido comunista. Em conversas com Brandão toma contato com algumas ideias de grandes  pensadores como Nietzshe e Tolstoi, estuda a doutrina marxista e passa a frequentar ativamente os  círculos marxistas. Entretanto, ao contrário de seus sonhos de transformação para o Brasil e o mundo,  a política se fortalece na direção contrária e se estabelece o regime autoritário de direita liderado por  Getúlio Vargas e consolidado durante o Estado Novo. 

Início da carreira de médica  

Em 1932 estagiou na famosa clínica neurológica do Dr. Antônio Austregésilo, o Pioneiro da  Neurologia no Brasil, e em 1933, aprovada em concurso, entrou para o serviço público no Serviço de  Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental, na Praia Vermelha, pertencente à antiga Divisão de Saúde  Mental, onde trabalhou como psiquiatra, interessada em novos métodos para tratar a esquizofrenia. Na  agitação política dos anos 1930, durante a Intentona Comunista foi denunciada como comunista por  uma enfermeira por possuir muitos livros comunistas e presa por 16 meses na Casa de Detenção da  rua Frei Caneca, onde conheceu Graciliano Ramos, que a descreve  

“… lamentei ver a minha conterrânea fora do mundo, longe da profissão, do hospital, dos seus  queridos loucos. Sabia-se culta e boa. Rachel de Queiroz me afirmara a grandeza moral  daquela pessoinha tímida, sempre a esquivar-se, a reduzir-se, como a escusar-se a tomar  espaço. O marido também era médico, era o meu velho conhecido Mário Magalhães. Pedi  notícias dele: estava em liberdade. E calei-me, num vivo constrangimento.” (Memórias do  Cárcere)

A fim de evitar a possibilidade de novas perseguições de caráter político Nise e seu marido voltam  para o Nordeste onde permanecem por sete anos. Usou esse tempo para se aprofundar em estudos  filosóficos principalmente Baruch Spinoza, filósofo e artesão judeu nascido em Amsterdã cujos  conceitos filosóficos sobre Deus e a Natureza contrariavam a Bíblia, motivo pelo qual em 27 de  julho de 1656, a Sinagoga Portuguesa de Amsterdã o pune com o chérem, o equivalente hebraico  da excomunhão católica, pelos postulados definidos em sua obra a respeito de Deus, defendendo que  Deus é o mecanismo imanente da natureza, e que a Bíblia é uma obra metafórico-alegórica, que não  pede leitura racional e não exprime a verdade sobre Deus. A influência dessas leituras leva Nice a  escrever, mais tarde, o livro “Cartas a Spinoza” cuja primeira edição ocorre em 1995. 

Com a anistia em 1946, Nise foi reintegrada ao serviço público e lotada no Centro Psiquiátrico  Pedro II, (Engenho de Dentro, RJ). Por discordar dos tratamentos tradicionais (tais como o  confinamento em hospitais psiquiátricos, eletrochoque, insulinoterapia e lobotomia), foi transferida  para a Seção de Terapia Ocupacional, onde as atividades “terapêuticas” dos pacientes se resumiam a  tarefas de limpeza e manutenção do hospital. Lá revolucionou o tratamento clínico dos pacientes  criando ateliês de pintura e modelagem baseada no fato de que tais produções estavam relacionadas,  de acordo com as ideias do grande psiquiatra Gustav Jung, às memórias do inconsciente. Nise da  Silveira concluiu que os resultados apresentados pelos pacientes, devidos a essas atividades artísticas,  se não levavam à cura, levavam a grande melhoria do seu nível de bem-estar e convívio social. Seu trabalho pioneiro de pesquisa sobre o tratamento da doença mental através da arte-terapia foi  reconhecido internacionalmente. 

Em 1952 Nise da Silveira funda o Museu das Imagens do Inconsciente, espaço destinado à exposição das obras e trabalhos dos artistas do Engenho de Dentro, e quatro anos mais tarde cria a  Casa das Palmeiras, a primeira clínica em regime de externato no Brasil, contando com a ajuda de  outras pessoas que auxiliaram para que esse novo espaço ganhasse visibilidade e reconhecimento como  utilidade pública pela lei 176 de 16 de outubro de 1963. Esta Instituição levou à criação em 1986 do  primeiro Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) na cidade de São Paulo e muitos outros atualmente existentes em todo o país no âmbito do Sistema Unificado de Saúde (SUS) com o objetivo de substituir  o modelo de asilo psiquiátrico ou manicômios. Pode-se afirmar que o trabalho pioneiro de Nise da  Silveira muito contribuiu muito o estabelecimento da terapia ocupacional como uma abordagem em  psiquiatria completamente aceita pelos meios médicos no Brasil. 

Algumas obras produzidas pelos pacientes. 

Pioneira na aplicação das ideias de Jung 

Interessada no estudo sobre mandalas, tema recorrente nas pinturas de seus pacientes, ela  escreveu em 1954 a Carl Gustav Jung, iniciando uma proveitosa troca de correspondência. Devido a  esses contatos Jung a estimulou a apresentar uma mostra das obras de seus pacientes no “II Congresso  Internacional de Psiquiatria”, realizado em 1957, em Zurique. A amostra enviada por Nise,  denominada “A Arte e a Esquizofrenia”, ocupou quatro salas do espaço do congresso. Ao visitar com  ela a exposição, Jung orientou-a, para a compreensão dos trabalhos criados pelos internos, a  estudar mitologia e religiões comparadas para encontrar a fonte ou arquétipos de tudo aquilo, que ele  afirmava, como ela já percebera lendo suas obras, ser a manifestação do inconsciente coletivo.

Prêmios e Homenagens 

Em reconhecimento a seu trabalho, Nise foi agraciada com diversas condecorações, títulos e  prêmios em diferentes áreas do conhecimento e, entre outras, citamos: 

▪ “Ordem do Rio Branco” no Grau de Oficial, pelo Ministério das Relações Exteriores (1987) ▪ “Prêmio Personalidade do Ano de 1992”, da Associação Brasileira de Críticos de Arte ▪ “Medalha Chico Mendes”, do grupo Tortura Nunca Mais (1993) 

▪ “Ordem Nacional do Mérito Educativo”, pelo Ministério da Educação e do Desporto (1993) 

Sua vida e obra inspiraram muitos trabalhos entre os quais o filme ” Nise – Coração da  Loucura”, de Roberto Berliner estrelado por Gloria Pires que ganhou os prêmios de melhor filme e  melhor atriz no Festival de Cinema de Tóquio de 2015. 

A grande luta de Nise da Silveira, como médica e pesquisadora, para humanizar o tratamento  psiquiátrico no Brasil, a partir das condições precárias existentes, na época, no Centro Psiquiátrico  Pedro II, Engenho de Dentro, Rio de Janeiro, merece a admiração e gratidão de todos nós. Ela falece na cidade do Rio de Janeiro em 30 de outubro de 1999. 

Na figura abaixo vemos uma imagem de Nise da Silveira e sua mensagem a todos que lutam  contra os mais diversos preconceitos.

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