O que é mulher?

Há 39 anos, Simone de Beauvoir, uma das teóricas mais importantes dos estudos de gênero e feministas, deixava esse plano. Entre as diversas contribuições, Beauvoir nos deixa uma pulga atrás da orelha quando questiona o que é ser mulher. Tendo em mente que ser mulher evidentemente não é algo natural, neste texto, apresento a visão de Beauvoir e outras duas importantes teóricas que contribuem para essa discussão, Monique Wittig e Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí. Afinal, o que exatamente quer dizer ser mulher? Existe “coisa” de mulher e “coisa” de homem? Quem criou esse termo?

“Todo ser humano do sexo feminino não é, portanto, necessariamente mulher”

Partindo desta frase, Beauvoir em O segundo sexo (1970), compreende a categoria “mulher” como uma categoria construída socialmente para manter as “fêmeas” em uma situação de alteridade aos “machos”, ou seja, a relação entre esses “sexos” determina-se de maneira que a mulher é o Outro e o homem é o Sujeito, tal relação não se refere a uma situação de reciprocidade, mas sim para manter a soberania de Um ao Outro, ou seja, manter a submissão das mulheres pelos homens.

Essa desigualdade não é natural, ocorre em detrimento de acontecimentos históricos que mantém tal sistema de subordinação, desse modo, por um lado, Beauvoir apresenta a tese que será explorada por Wittig em O pensamento hétero (2022), tal desenvolvimento histórico explica a existência da opressão das mulheres como classe, em que a mulher, no papel de Outro, não se reivindica como Sujeito por não possuir os meios concretos para tal, no entanto, ela conclui que “para elucidar a situação da mulher são ainda certas mulheres as mais indicadas”, no pensamento de Wittig essas certas mulheres são as lésbicas, ainda que não estejam enquadradas totalmente na categoria mulher.

Por outro lado, Beauvoir também questiona: “Haverá realmente um problema? Em que consiste? Em verdade, haverá mulher?”, ao passo que o modelo do que é ser uma mulher nunca foi registrado, pode-se pensar que o padrão criado pelo Ocidente não se aplica em todas as sociedades e muito menos de maneira igualitária entre elas em sociedades africanas, especialmente da Nigéria, tese que será explica por Oyěwùmí em A invenção das mulheres (2021), que desenvolve que o conceito de feminilidade foi trazido pelo colonialismo, isto é, se a categoria mulher no Ocidente, que a inventou, ainda não aparece de forma padronizada. Oyěwùmí irá explorar como ela acontece em sociedades que tal categoria foi imposta, de forma ainda mais abrupta, entre as pessoas que os homens, brancos, supõe serem as mulheres por questões meramente “bio-lógicas”.

Wittig e Beauvoir compartilham a crença que enquanto em relações de subordinação, como o caso da escravização, que se fundamenta por necessidades econômicas recíprocas que não libertam o escravizado, no caso da relação entre homens e mulheres, tal oposição funciona não apenas como diferença sexual, mas como pertencentes a ordens econômicas, políticas e ideológicas. A alteridade entre as categorias “homem” e “mulher” se dão de modo que o Outro (mulher) apenas existe pela imposição e definição do Um, ou do Sujeito (homem), ou seja, o “sexo” não existe por si, a opressão entre os sexos que o criam, isto é, para o “sexo” existir é necessário que um seja oprimido (a mulher) e outro oprima (o homem).

Fonte: Site oficial de Monique Wittig.
Foto de Babette Mangolte.

A questão de classe aparece, para Wittig, de modo que tais categorias de oposição (homem versus mulher) não existiam antes do conflito, apenas existiam como categorias de diferença, ou seja, eram “dadas” como naturais, o que dificultava a dialética, a mudança e o movimento da luta de mulheres para tomarem consciência de sua situação de subordinação aos homens. O pensamento que as categorias de oposição são naturais e anteriores à sociedade são afirmadas pelo pensamento dominante, tal dominação forma um construto político que afetam toda a vida das mulheres, permeiam os pensamentos, gestos, atos, trabalho, sentimento, relacionamentos.

É dessa maneira que a categoria sexo é a categoria política que funda a sociedade (ocidental) como heterossexual, ela não se refere ao ser, mas em relações, é aquela que determina que é “natural” a relação heterossexual, ou seja, as mulheres são “heterossexualizadas” e submetidas a economia heterossexual, que é a obrigação de trabalhos associados “por natureza” à reprodução compulsória da “espécie”, criação de filhos e tarefas domésticas. A categoria sexo como produto da sociedade heterossexual, que os homens apropriam para si o trabalho de reprodução e produção realizado pelas mulheres, tem como principal engrenagem o contrato de casamento, que vincula a mulher ao homem de modo que apenas a lei pode separar, assinalando à mulher obrigações como o trabalho não remunerado, ou seja, as obrigações impostas com o casamento são a renúncia pela mulher de sua pessoa física ao homem que se torna seu marido.

Na visão de Wittig, a categoria sexo é o que determina a escravidão das mulheres, ela funciona aprisionando fortemente as mulheres, fazendo-as serem visíveis apenas como seres sexuais, e não sociais. O que se entende como causa ou origem da opressão é, na verdade, a marca imposta pelo opressor, ou seja, o “mito da mulher” tem efeitos materiais e é manifestado na consciência e no corpo apropriado das mulheres, torna-se uma construção mítica que reinterpreta características físicas por meio da rede de relações em que são percebidas, isto é, são vistas como mulheres, logo, são mulheres – desconsiderando que antes de serem vistas dessa maneira, tiveram de ser feitas dessa maneira.

As lésbicas, na sociedade heterossexual, estavam (ou estão) à mercê de uma coerção política em que eram (ou são) acusadas de não serem mulheres “de verdade”, ou seja, o opressor as reconhecia como não-mulheres, partindo do princípio que para ser mulher é requisito ser “de verdade”, ou seja, participar dessa relação de subordinação em que as mulheres heterossexuais estão submetidas, isto é, de “serem” propriedades (materiais e sexuais) dos homens. Portanto, o ponto principal de Wittig é que a recusa de se tornar, ou permanecer heterossexual, nessa sociedade, significa a recusa de se tornar homem ou mulher, conscientemente ou não, isto é, para uma lésbica, a recusa é além do “papel de mulher”, é a recusa do poder econômico, ideológico e político do homem. Desse modo, enquanto a abordagem feminista destrói a ideia de que as mulheres são um grupo natural, a existência da sociedade lésbica destrói o fato social que as constitui como tal grupo.

A proposta de Wittig se insere na tarefa histórica do feminismo de definir em termos materialistas o que se chama de opressão, isto é, deixar em evidência que as mulheres são uma classe equivale dizer que “mulher” e “homem” são categorias políticas e econômicas, portanto, a luta política é para suprimi-las, ou seja, quando os “homens” enquanto classe desaparecerem, as “mulheres” irão também, dado que elas são produto de uma relação social de exploração. Uma vez que se reconhece a opressão, é possível conhecer e experimentar a possibilidade de se constituir como Sujeito, tornar-se alguém além da opressão. Sendo assim, é necessário a destruição da sociedade heterossexual como sistema social fundado na opressão das mulheres pelos homens, o que produz a doutrina da oposição entre os sexos para justificar tal opressão. 

Por fim, Wittig argumenta que na filosofia ocidental, com pretensão à universalidade, o considerado “humano” são os homens brancos, proprietários dos meios de produção e filósofos que teorizam seus pontos de vista como únicos e exclusivos, por tal motivo é necessário considerar a forma abstrata da humanidade, de modo que ser lésbica está nas fronteiras da condição humana, a situação das lésbicas está localizada filosoficamente (politicamente) além das categorias de “sexo” (diferente das “mulheres”, que apenas são vistas como seres sexuais), visto que, em termos práticos, elas fugiram de sua classe, ainda que parcialmente.

Fonte: Seminario Universidad. Foto de Kattia Alvarado.

A pretensa universalidade inventada pelo pensamento ocidental é a tese de Oyěwùmí, que se debruça em uma mudança epistemológica ocasionada pela imposição das categorias de gênero ocidentais sobre o discurso iorubá. A chamada “questão da mulher” é um tema derivado do Ocidente, ou seja, a categoria “mulher” não existia na Iorubalândia antes do colonialismo, não existia tal grupo caracterizado por interesses compartilhados, desejos ou posição social, foi um problema importado e não autóctone para os povos iorubás.

De acordo com Oyěwùmí, a lógica cultural das categorias sociais ocidentais é baseada em determinismos biológicos, uma “bio-lógica”, onde a biologia fornece a base lógica para a organização do mundo social, sendo assim, as categorias sociais como “mulher” são baseadas em um tipo de corpo e elaboradas em relação de oposição com a outra categoria “homem”, portanto, no mundo social iorubá, tal lógica apenas foi possível com a invenção da categoria mulher no âmbito do discurso, dado que antes das imposições das noções ocidentais, o corpo não era a base dos papéis sociais, inclusões e exclusões, não foi o que fundamentou o pensamento e as identidades das sociedades iorubás.

A crítica de Oyěwùmí também se insere nas suposições ocidentais sobre as diferenças sexuais usadas para interpretar a sociedade iorubá, criando um sistema local de gênero, problematizando algumas ideias comuns em escritos feministas ocidentais, como:

(1) as categorias de gênero são universais e atemporais;

(2) o gênero é um princípio organizador fundamental em todas as sociedades e, portanto, é sempre proeminente;

(3) a categoria “mulher” é essencial e universal;

(4) a subordinação das mulheres é universal; e

(5) a categoria “mulher” é pré-cultural, fixada no tempo histórico e no espaço cultural.

No caso iorubá, o corpo não era generificado ou constituído como evidência para classificação social, não era a base da hierarquia social, ou seja, machos e fêmeas não eram estratificados de acordo com divisões anatômicas ou biológicas, o gênero simplesmente não era inerente à organização social humana, diferente do Ocidente, onde as categorias sociais derivam essencialmente das diferenças sexuais percebidas no corpo humano.

Desse modo, o determinismo biológico é o filtro através do qual o conhecimento sobre a sociedade funciona no pensamento ocidental, os atores sociais são representados como grupos e não como indivíduos, e tais agrupamentos são concebidos como biologicamente constituídos. Oyěwùmí também é contrária à ideia de que a biologia é o destino, ou o destino é a biologia, o que é um marco do pensamento ocidental, nessa percepção, a noção de que as diferenças e as hierarquias na sociedade são biologicamente determinadas têm credibilidade, ou seja, quem está em posições de poder está pela superioridade de sua biologia, enquanto os que estão inseridos na categoria Outro, de posições sociais desfavorecidas, são submetidos à dominação, vistos como biologicamente inferiores.

O resultado que emerge dessa concepção é a noção de sociedade essencialmente corporificada, o corpo é constituído de lógica própria, uma vez que ele é o alicerce em que a ordem social é fundada. O corpo está tão inserido no centro das categorias e discursos sociopolíticos, que a “ausência do corpo” é uma precondição do pensamento racional, ou seja, mulheres, judeus, africanos, pobres, são considerados corpolizados, de modo que a razão está distante deles.

Muitas categorias de oposição são socialmente construídas no Ocidente, portanto, para Oyěwùmí, o ponto não é o fato do gênero ser socialmente construído, mas em que grau a própria biologia é socialmente construída, a consideração do gênero como uma construção social supõe que a subordinação das mulheres é universal, sugerindo uma base biológica ao invés de cultural, ou seja, o gênero ser socialmente construído significa que os critérios que compõem as categorias variam em diferentes culturas. A importância de tal observação consiste em não supor que a organização social de uma cultura seja universal, ou que as interpretações das experiências de uma cultura expliquem outras, portanto, a construção do gênero, em um nível global geral, sugere a mutabilidade, enquanto no nível local, isto é, dentro dos limites de qualquer cultura particular, o gênero apenas é mutável se for construído socialmente como tal.

Diferentes abordagens para a compreensão da realidade sugerem diferenças epistemológicas entre as sociedades, em relação à sociedade iorubá, as relações derivavam sua legitimidade dos fatos sociais, e não da biologia, a natureza da anatomia não definia a posição social de uma pessoa, consequentemente, a ordem social iorubá requer um outro tipo de compreensão, e não uma compreensão generificada que pressupõe a biologia como a base do social, isto é, a “fisicalidade” da masculinidade ou feminilidade não possuía antecedentes sociais e, portanto, não constituía categorias sociais, a hierarquia social era determinada pelas relações sociais.

Referências:

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: 1. Fatos e mitos. 4ª ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970.

WITTIG, Monique. O pensamento hétero e outros ensaios. Belo Horizonte: Autêntica, 2022.OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.

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