Os cacos da existência

Antônia me liga aflita: “entrou uma pessoa em minha casa nessa madrugada… levou umas coisas aleatórias – amendoim, guarda-chuva, boné, e umas coisas que valiam mais dinheiro- celular, meu tênis”. Ela respira, e continua: “Tem uma coisa quebrada em mim, não sei ainda o que é, mas tem”, fala Antônia, com ar devastador.

Ela mora sozinha em Natal. Mudou-se recente, há 7 semanas. Conecta-se com a casa como jamais fizera com outra residência. Suas paredes carregam algo misterioso, seu pátio tem algo bucólico, o céu visto de sua casa parece mais estrelado.

Logo que acordou pela manhã, enviou mensagem ao dono do imóvel. O silêncio pairou no diálogo de forma a ecoar no corpo de Antônia por vários dias. Nem “Como você está?” o dono do imóvel – Manoel – falou, além de não ter respondido a mensagem que ela enviou no começo do dia. A lacuna pairou no ar e em seu corpo. Os cacos que existiam em Antônia ficaram grandes, tomaram uma proporção que nem ela tinha dimensão.

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Acervo pessoal – Correntes do fundo do Rio Negro em período de seca (2023)

A história de Antônia sai dilacerando o meu ser, como correntes presas e abrasadas pelo calor.

Alguém entrar em sua casa e invadir sua privacidade deflagra muitas coisas: a violência e suas várias nuances, os problemas sociais de nossa sociedade… Mas para além das questões sócio-econômicas, das instituições relacionadas a esse tipo de crime, escancara algo sutil e pertinente a vida em sociedade: capacidade de acolher a dor do outro, de ser empático diante do sofrimento da pessoa. 

Enquanto a dor é do vizinho, do morador de rua, ocorrer em locais “distantes”, forem guerras e conflitos em regiões remotas, os Manueis da vida não irão expressar ‘Como você está’. 

Esse silêncio ainda reverbera em mim… 

Seria um não saber lidar com a situação ou indiferença? Ou uma atitude de não querer ouvir, porque a partir do momento que escuto o outro, responsabilizo-me com aquilo que faço com o que escutei? 

Ou se fosse um Antônio, a situação mudaria? Haveria uma capacidade de afetar ou tomar uma ação acolhedora ou resolutiva se fosse um Pedro, João…?

Ver as situações ocorrendo de um ‘camarote’ e não tomar nenhuma atitude, ficar omisso diante das violências que ocorrem é algo, no mínimo, desrespeitoso.  

Antônia gerou expectativas em Manoel, tendo em vista que ele é o responsável pelo imóvel? Ou realmente foi negligência (no mínimo) por parte dele, tendo em vista que todo sujeito de direito, tem deveres também?

Eu só realizo um movimento quando doi em mim? Quando é com alguém da minha família ou que eu tenho afeto? Como estamos cuidando das mulheres? Como estão sendo protegidas? 

Nesse recorte, cuja protagonista foi Antônia, a casa foi violada. Mas diariamente, as casas, enquanto corpos, são violados também. São muitos Manueis causando dores e sofrimentos de diversas ordens. 

E diante disso, como pensar a vida em coletividade? Como é que fica a questão ética diante da trajetória humana? 

A experiência de Antônia me faz refletir sobre as prisões que enquanto mulher e sociedade, por mais avanços que tenhamos adquirimos, ainda estamos acorrentados. Foi quebrado algo em meu ser, junto com os cacos de Antônia. 

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Antônia

 lia muito 

Manoel Bandeira.

Agora

está se dedicando 

à Carolina de Jesus.

Acervo pessoal – Entrada do Mercado Municipal Adolpho Lisboa, em Manaus

Uma resposta

  1. Pessoa que me inspira e que emana luz por onde passa. Que sua arte alcance a todos nós sempre, querida! Você é luz🥰😍😴

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