“Quando mulheres se juntam elas têm o poder de criar uma comunidade inteira, uma rede de afetos que pode mexer com as estruturas desse mundo patriarcal, individualista e competitivo”, diz a socióloga, psicanalista e documentarista Ingrid Gerolimich, autora do livro “Para revolucionar o amor: A crise do amor romântico e o poder da amizade entre mulheres”.
No livro, que nasceu a partir de um artigo publicado na revista TPM que questionava frustrações e pressões da vida das mulheres, Ingrid reflete sobre os impactos do amor romântico na vida de gerações de mulheres recorrendo a pensadoras como Audre Lord, Michelle Perrot, Suely Rolnik e bell hooks trazendo um importante questionamento para os dias atuais: seria a amizade entre mulheres o novo amor romântico?
Dividido em três partes – “Mas, afinal, o que é a mulher?”, “Eros em crise existencial” e “A amizade feminina é a revolução” – o livro questiona o papel do amor romântico na sociedade, afirmando que essa visão idealizada, muitas vezes, serve para controlar as mulheres, limitando suas ambições e suas possibilidades de felicidade.
Conversei com ela sobre o livro para a gravação do podcast Entre Elas que vai ao ar pela Rádio Cultura de Curitiba e também disponível no Spotify.
HS – Você se diz, antes de tudo, uma defensora do amor. Mas eu te pergunto quais os impactos do amor romântico na vida de gerações de mulheres e se precisamos desconstruir o amor romântico?
Ingrid Gerolimich – No livro eu falo que sou uma defensora do amor para que a gente entenda sobre o que se está falando ali. Falo de um amor que é uma construção, é cultural, de uma determinada época e de um determinado sistema social que, neste caso, é o sistema capitalista. Eu falo da formação do amor desde o seu processo histórico, que vem lá do amor cortês. O amor romântico vem no momento da história do mundo, que é o momento justamente da revolução industrial, e surge como um instrumento que vai sendo utilizado como discurso e organização da sociedade, através da formação das famílias, onde a mulher passa a ter um papel social e determinadas funções como a do cuidado, da maternidade. Eu trago também no livro que isso não foi sempre assim. Isso faz parte de uma determinada estrutura social, que é a lei do capitalismo patriarcal, e como isso vai se transformando ao longo do tempo. O que eu quero mostrar é que tudo não passa de uma construção e que, portanto, a gente pode construir outros discursos, pensar novas maneiras de existir e criar novas subjetividades para as mulheres, que não definam a existência feminina a partir do olhar masculino. O amor romântico vai sendo utilizado por esses sistemas como uma forma de dominação mesmo, colocando a mulher sob determinados parâmetros de existir, que a aprisiona nesses discursos. É preciso, como costumo dizer, descolonizar o inconsciente feminino, abrindo espaço para outras possibilidades e experiências mais libertárias.
HS – A amizade entre mulheres é transgressora? Em que medida? Existe, de fato, uma rivalidade feminina ou é mais uma narrativa construída como o patriarcado, o capitalismo e outras tantas? Por que entre os homens existe a famosa “broderagem”.
Ingrid Gerolimich – Amar é político e a amizade entre mulheres é a revolução. A amizade sempre teve uma importância muito grande na formação de diversas sociedades, do ponto de vista de organização mesmo dessas sociedades, inclusive na Grécia Antiga, a amizade era muito importante, a chamada “philia”. Os homens se organizam, no que podemos chamar de confrarias, muitas vezes, para manter determinados poderes. Eu acho que a amizade entre mulheres é muito mais poderosa e afetiva. Se você for a qualquer comunidade aqui no Rio de Janeiro verá que são as mulheres que se apoiam, umas cuidam dos filhos das outras, elas realmente se organizam como uma comunidade que cuida e apoia umas às outras. Eu acredito que essa história de rivalidade feminina foi também uma construção, um mito que foi se construindo ao longo do tempo. E pensar dessa forma acaba sendo perfeito para o sistema.
HS – A amizade feminina é um ato político? Em que medida ela pode ser um anteparo contra a misoginia, a violência de gênero e a masculinidade tóxica?
Ingrid Gerolimich – A amizade feminina não é só um alento na solidão, o que por si só já seria ótimo. Ela também tem a função de uma reorganização social. Se pensarmos que estamos, cada vez mais, caminhando para o individualismo e para uma sociedade extremamente competitiva, mais narcisista, pois cada um só olha para si mesmo. Pensar a amizade a partir de uma nova perspectiva de organização social e novas configurações familiares traz um novo olhar para esta relação até mesmo do ponto de vista jurídico. Em alguns países, inclusive, as famílias formadas por amigos têm todos os direitos e, isto, é extremamente inovador e revolucionário porque mostra que a formação de uma família não está apenas no contexto que conhecemos – pai, mãe e filhos – o que é extremamente conservador, mas que existem outras formas de nos constituirmos enquanto sociedade, a partir do conceito de comunidade, aliás um conceito que a gente precisa resgatar e que vemos funcionar muito bem nos povos originários e em diversas outras sociedades africanas. Sobretudo para a mulher, a amizade traz a possibilidade de construirmos a nossa alteridade, não a partir da figura do homem, mas a partir da figura de outras mulheres, de termos outras mulheres como espelho. A busca desse amor romântico não é o único caminho. Podemos ser livres e felizes de outras formas. Nesse sentido, acho a amizade entre mulheres bastante revolucionária, inclusive, do ponto de vista subjetivo, pois nos faz pensar na possibilidade de outros afetos tão interessantes quanto a busca do amor romântico. A gente precisa desconstruir o mito de que a amizade ocupa um lugar menor e menos importante que o amor romântico. Precisamos ter o mesmo olhar e cuidado com as amizades. É preciso que a gente aprenda a priorizar a amizade. A gente investe tanto psiquicamente no amor romântico que, muitas vezes, esquecemos de criar outros laços afetivos importantes, como a amizade.
HS – O que você recolhe no divã em relação a essa temática?
Ingrid Gerolimich – A gente aprende a valorizar mais o “ghosting” no amor romântico. A amizade aparece sempre em segundo plano, em menor importância. Mas quando o “ghosting” aparece também nas relações de amizade provoca uma dor imensa e nos faz viver um luto de uma relação que nos é muito importante e que, muitas vezes, é um sofrimento incompreendido. A gente não está acostumada a sofrer pelo distanciamento de uma amiga ou amigo. É um sofrimento que não passa pelo erótico ou sexual, e as pessoas se envergonham desse sentimento porque a amizade não é valorizada no contexto social. A amizade tem que ser um afeto a ser valorizado tanto quanto um relacionamento amoroso. O que proponho no meu livro é justamente isso: o resgate e a valorização da amizade. A solidão, hoje, já é um problema social. E o que é a solidão, senão o reflexo das redes sociais, da desconexão com o outro. A amizade pode ser, justamente, o antídoto para isso. Precisamos pensar que tipo de sociedade estamos construindo. Precisamos exercitar a escuta do outro, a empatia e a capacidade de se relacionar. É preciso pensar a amizade enquanto algo estruturante e político. Algo disruptivo e subversivo.
Saiba mais:
Livro: Para revolucionar o amor: a crise do amor romântico e o poder da amizade entre mulheres
Editora: Claraboia Editora
Páginas: 178
Preço: R$ 59,90
Ouça também no Spotify a conversa completa
no Projeto Entre Elas – Episódio 121

Patrizia Corsetto é jornalista, radialista e psicanalista. Pós-graduada em Estudos Literários. Curadora, produtora e apresentadora do podcast Entre Elas. Editora e sócia na Calligraphie Editora.