“Onde é que eu estava com a cabeça?” Me perguntei quando percebi que imaginei ser capaz de dar todas as aulas dessa semana enquanto me sentia exausta por estar de pé, lavando uma louça na pia da cozinha. Aconteceu que nessa entrada do inverno, dia 20 de junho, coincidindo com a entrada do sol em Câncer, fui surpreendida com um convite muito significativo, em que tudo a minha volta me convocou a um movimento profundo de introspecção. Meu corpo me sinalizou que estava adoecendo e em poucos dias me vi gripada, sem
forças para fazer muita coisa. Ao mesmo tempo, recebi minha menstruação, um chamado mais que explícito para voltar-me para dentro, para o íntimo, para me recolher.
Ouso explicar: O sol em Câncer nos convida para a vida interior, para nos conectarmos com nossas origens, com nossas raízes e na lua nova do dia 25, a astróloga Nídia Linhares sincronicamente trouxe nesse vídeo, uma análise que torna essa viagem ao nosso centro ainda mais delineada. O inverno nos faz um pedido muito similar, basta observar o recolhimento em tudo na natureza, poupando energia e nos induzindo a uma maior introspecção e maior silêncio, tanto dentro quanto fora. Por sua vez, o corpo adoecido, sem poder nos entregar muito, pede o mínimo de esforço, o mínimo de movimento ou movimentos mais lentos, um gentil desacelerar. Simultaneamente, a menstruação é um período do ciclo de fertilidade em que possuímos pouca energia disponível, além de ser equivalente à lua nova, lua que se abriga no mistério, se ocultando por alguns dias no céu. Ou seja, uma enorme força centrípeta tomou conta de mim e não tive outra escolha a não ser aceitar. Aceitar e Receber. Recepcionar o que a vida cantou em meus ouvidos, sussurrou em meus poros, debruçou sobre meus olhos. Fique quieta.
Certamente você conhece, sabe como é. O nosso corpo está sempre nos dizendo por onde ir, o que precisamos, o que queremos, o que nos faz bem e o que rejeitamos, mas ainda teimamos em seguir a imposição dos pensamentos, das regras, das normas, das lógicas racionalizadas. Como é difícil resistir ao magnético centro do dever e nos direcionarmos às margens do devir! Pois a intuição, voz do corpo, é mais sutil, de natureza mais rebelde, mais revolucionária, e talvez por isso nos custe tanto escutá-la e obedecê-la. Porém, é através dela que nos sintonizamos às nossas reais necessidades, acessamos o que nos motiva, o que nos dá entusiasmo. Considerando sua etimologia, ou seja, sua origem, sua raiz, Entusiasmo vem de Enthousiasmos, en e theos. En significa dentro. Theos significa deus. Sentir-se entusiasmada é encontrar a força criadora, ou deus (a/es), dentro de si.
Diante disso, preciso confessar. Tenho sentido falta do apaixonamento que senti com a minha vida entre 2018 e 2022, anos em que recalculei a rota, voltei atrás, mudei de ideia, e entendi que minha expressão artística era diferente do que aquela que estava perseguindo anteriormente. Tudo começou em um dia de inverno – veja só! Estava em casa, numa tarde fria, deitada na rede, cheia de cobertas e acompanhada de um livro: O caminho natural da voz, de Anna Paula Sahdi. Num de seus capítulos iniciais ela descreve o processo respiratório de
uma maneira em que me foi possível ler e ir sentindo as estruturas do corpo responderem imediatamente ao que estava descrito. Então, li a seguinte sentença que caiu como um raio em minha cabeça: Respirar é o primeiro e o
último ato que fazemos em vida.
Pare.
Leia esta frase novamente.
Respire 7 vezes.
UM. Respirar é o primeiro e o último ato que fazemos em vida.
DOIS. Respirar é o primeiro e o último ato que fazemos em vida.
TRÊS. Respirar é o primeiro e o último ato que fazemos em vida.
QUATRO. Respirar é o primeiro e o último ato que fazemos em vida.
CINCO. Respirar é o primeiro e o último ato que fazemos em vida.
SEIS. Respirar é o primeiro e o último ato que fazemos em vida.
SETE. Respirar é o primeiro e o último ato que fazemos em vida.
Aquilo me deslocou de tal maneira que senti, pela primeira vez em minha vida, que eu acabara de cair em meu próprio corpo.
Nos anos seguintes, e desde então, passei a questionar tudo o que eu fazia e como fazia. Ainda fazia sentido cantar? O que fazia sentido cantar? Que canções me ajudam a dizer o que sinto e penso sobre a vida, sobre o mundo, sobre as relações, sobre aquilo que me importa aqui e agora? Qual é o assunto das minhas composições? Que narrativas são essas que quero repetir como mantras para mim mesma cada vez que eu canto? Que voz é essa que quero colocar nos lábios de quem canta comigo? Durante esse período, abriu-se uma
grande porta a qual atravessei entusiasmada, cheia de tesão, os olhos brilhando, o ânimo (que vem de animus, alma) de atravessar os processos e os desafios percorria todo o meu corpo. E sei que isso foi possível porque naquele inverno eu me recolhi.
Hoje, sinto falta dessa vontade de viver pulsando ativamente como pulsava naquele momento e que, certamente, não sentirei outra vez – pelo menos não exatamente daquele modo. Cada momento é único. Contudo, sou uma alma inquieta e sigo me recusando a aceitar que a vida é um acontecimento pouco excitante, sem tesão. A maior responsável pelo ‘apagamento’ do tesão, do interesse genuíno e entusiasmado, não podemos negar, é a voz massacrante do capitalismo neoliberal, que sussurra o dever, o consumo frívolo, o imediatismo, e nos faz engolir seus belos e intoxicantes frutos desprovidos de qualquer sabor, enquanto nos esmaga em rotinas desumanas e sem direito ao descanso. Ainda assim, suspeito que a falta de entusiasmo é sintoma, uma pista do corpo de que
algo está exigindo um processo de mudança. É imperativo mudar, não vai ter outro jeito. Continuar como está é morrer, é aceitar o esgotamento.
Retomo então minha pergunta inicial, sob outro prisma: Onde estamos com a cabeça? Como queremos nos abastecer e preencher de vida, de força criadora, de entusiasmo, se não nos autorizamos parar e recolher, se não sabemos reconhecer e escutar os indícios que nosso próprio corpo nos oferece em diálogo íntimo e ininterrupto com a esfera de vida da qual fazemos parte? Como vamos captar as atraentes e encantadoras fagulhas da inspiração, brilhando diante de nós, se nosso olhar não se prende a nada por mais do que 13 segundos, se perdemos a capacidade de contemplar, de olhar pro suposto vazio e encontrar algo ali, inesperadamente?
É decisivo aceitar o convite do inverno e fazer esse movimento junto com absolutamente tudo a nossa volta: plantas, animais, águas e toda a vida. Tudo recolhe, porque com você seria diferente? Essa ideia que temos de crescimento constante para frente e para cima, ao infinito e além nos adoece,
não somente das gripes invernais, mas também em nossa própria mente, em nossa capacidade de [re]imaginar nossa própria vida, com outros cenários, novas identidades, manifestando novos (ou não tão novos) desejos… A ideia de expansão infinita nos impede de constatar que já estamos vivos, respirando e que tudo já está. Essa obsessão nos inibe de reencontrar nosso entusiasmo de irmos em busca daquilo que nos preenche de vida dentro para que possamos, enfim, transbordar. Derramar para além das margens do que acreditávamos que
deveríamos ser e nos tornarmos o ainda “não nascido”, o “não sonhado”, o ainda “não imaginado”. Renascer nas primeiras chuvas da primavera.

Dadona é artista LGBT, cantora, compositora e bacharela em Música Popular (UNICAMP). Professora de canto desde 2011 e pesquisadora em corpo-voz-expressão. Integra o grupo Kundengo. Lançou “Madrugada Chegou”(2019). Em 2025, prepara seu segundo álbum.
Respostas de 3
Nossa, o seu texto me tocou profundamente!
A parte que você cita o quanto é dificil resistir ao centro magnetico do dever me pegou em cheio, entendi que foi sempre por conta desse magnetismo que eu abri tantas vezes mão de me ouvir, de me permitir sentir. Eu já tinha tomado consciência do quanto me desconectei de mim com isso mas, você me trouxe uma nova consciência, um novo ângulo. Gratidão!
Sigo nesse movimento cada vez mais intencional de me ouvir e de me sentir, pra ser e estar presente.
Falando em presente, foi um presente te ler essa manhã.
Aaai Iris!! Que delícia receber sua leitura!! Esse magnetismo é dureza demais!! Eu acredito muito nessa força de nos apoiarmos nessa contra-cultura. Resistir sozinha é muito mais difícil, enquanto juntas o esforço se ameniza e até sentimos que seguimos um fluxo. E assim, inauguramos novas perspectivas, criamos juntas a nova realidade ué queremos viver!
Por um devir surpreende para nós todas e todes!! ❤️
Tão potente este seu convite, recolher-se também exige coragem, lindo texto. Que o entusiasmo brote em nós como uma flor que desabolrocha na primavera.