Impotência, o hype e o lucro da morte de nossas jovens ousadas

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Impotência, o hype e o lucro da morte de nossas jovens ousadas

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O vídeo da turista brasileira Juliana Marins caída na montanha me paralisou. Por segundos revivi a secura na garganta, o nariz cheio de poeira de vulcão, a falta de ar, tonturas, a dificuldade de me mover, o vento gélido e cortante no rosto e a exaustão física de quando subi o Rucu Pichincha, em Quito, no Equador. Fiquei no caminho, com meu companheiro na época, desistimos juntos e voltamos. Exaustos. Mas naquele momento, vendo o vídeo da garota viva, tive certeza de que estaria em casa logo, como eu estive, que o resgate seria breve. Não seria possível. Mas foi.


Dias agoniada me fizeram colar nas notícias sobre o caso. Chorar várias vezes e não emitir opinião. Nada precisava ser dito. Tudo era falado, o tempo todo, por diversos especialistas, nas diversas páginas cobrindo assunto e, apenas algumas, cobrando algum movimento. Observei a mídia em geral. Primeiro, as notícias falsas de que ela teria recebido comida, depois a inerte postura generalizada. A postura do parque, que seguiu realizando caminhadas como se nada houvesse acontecido enquanto alguém padecia em sofrimento a menos de 150 metros, sem resgate.


Como guia e operadora de turismo, logo senti o peso da responsabilidade de quem estava com ela no local. Me perguntava sobre o guia de turismo, que condição e treinamento tinha este jovem rapaz com menos de 2 anos de profissão, buscando ganhar a vida através de uma atividade turística de impacto que cresce massivamente? Me perguntei se ela não tinha seguro viagem? Se não havia um protocolo de emergências e resgate em vigência? Se ninguém, mesmo que fosses os companheiros de trilha com quem tirou foto antes, poderiam alertar as autoridades. Muitas perguntas sem resposta, perdidas no vazio dos dias que se passavam.

Catharina Apolinário em Rucu Pichincha, em Quito, no Equador.


Naquele momento já não era mais novidade para NINGUÉM o caso da brasileira no Rinjani. Eu daqui, indignada, mas impotente, pensei na responsabilidade partilhada de agências – locais e de internet – que vendem e mediam vendas dos produtos turístico, tendo seu lucro com percentuais dos valores pagos, no conforto e na segurança dos seus escritórios comerciais. Porém, o que veio foram condenação das vítimas em matérias que falam sobre mortes no mesmo local, como em 2022, “um alpinista português de 37 anos morreu ao despencar de um penhasco no cume do Rinjani enquanto tirava uma selfie”. O problema é a selfie, a ida virtual, e até acredito que este universo midiático tenha muita culpa nos desastres atuais do mundo e na vida das pessoas, mas este é outro assunto.

Também constatei a responsabilidade de um país, estado e cidade, que fomenta o turismo, convidando as pessoas a vivenciar experiências em seus territórios, sem fornecer o mínimo de estrutura. Não se enganem, quem está acostumado a operar ou desfrutar de roteiros turísticos sabe que é mais comum do que se pensa. Existem os curiosos, os irresponsáveis e os lucradores a todo custo. Na minha cabeça passam ainda exemplos recentes de tragédias em atividades turísticas, muito recentes.


Como comunicadora, assisti um show de horror. Ao se depararem com a situação da jovem que há dias esperava por socorro, artistas e pessoas com influência passaram a pressionar por ação, mas cada dia que se passava Juliana perdia sua energia vital e descia pelo terreno arenoso do vulcão. Algumas páginas só deram a morte dela, nunca o apelo pela vida. Ao mesmo tempo, muitas pessoas a condenavam mesmo antes de sua morte. Mas porque ela foi para um lugar deste? Passou por isso pois estava sozinha? O que será que ela fez para acontecer isso? Quis aparecer e veja no que deu.


Passaram pela minha timeline ricos praticantes de montanhismo, por esporte e adrenalina, afirmando que o pacto na montanha é deixar o corpo pra trás. Assim, com a maior naturalidade. Porém, isso diz respeito a uma cultura esportiva rica, branca e patriarcal. Inclusive, postagens onde as pessoas se solidarizavam com Juliana e com Edson Vandeira, que faleceu durante uma escalada no Peru em 22 de junho de 2025, relacionando os casos como iguais. A diferença é que Edson vivia disso, para isso e por isso, segundo a própria família. Tinha equipamentos, treinamento, horas a fio de experiência.

Pois é, Juliana não era nem branca, não era homem, não era rica e não era montanhista profissional, sequer por recreação. Era uma garota sonhadora que via na internet lindas imagens dos vulcões sob o sol, e aquela sensação de liberdade e vitória que subir em um parece dar. Simples, trabalhadora, curtindo momentos em família e buscando oportunidades de ser feliz, de dizer aos ventos a força da sua liberdade e a outras garotas: furem o pacto patriarcal da branquitude!


Mas garotas como ela recebem, acima de tudo, julgamento. Enquanto um pai desesperado tenta ir ao encontro da filha, as bombas de uma guerra histórica, que ostenta tecnologia, lhe mantém no chão. Que desespero. E após 4 dias, boquiaberta, eu vi VOLUNTÁRIOS, que hoje mostram os casacos recebidos por uma marca patrocinadora, que ganharam para poder dormir do lado do corpo da brasileira, se mobilizando para o resgate que já parecia ser impossível. Vaza então uma foto de um deles, Agam Rijani, fumando um cigarro. E então o tema vira a falta de ética em fumar cigarro no trabalho. Que absurdo uma foto fumando, diziam os comentários moralistas.


Foi este pulmão de fumaça e mais alguns locais não conformados, e que tem responsabilidade com a vida humana, que precisavam dizer ao mundo: aqui na nossa casa a gente não deixa ninguém para traz. Com recursos próprios e muita força de vontade se arriscaram para possibilitar trazer Juliana para casa. Em sua página no INSTAGRAM ele pediu desculpas por não ter feito antes. De repente, eu vejo uma live dele com uma brasileira, no dia seguinte do acontecido, que lhe dizia: Congratulations. Sem graça ele disse que não falava inglês e ficou assistindo ela tentar falar enquanto muitas mensagens e curtidas do Brasil chegavam, o reverenciando e agradecendo pela coragem.

Segui assistindo para saber até aonde as pessoas iriam para ganhar curtidas sobre o sofrimento, julgar sem ser BBB e morrer de inveja de pessoas ousadas, ainda que simples, ainda que pobres, ainda que heroicas, ainda que mortas. Entre um comercial de BET protagonizado por um ídolo da luta antirracismo no futebol e outro de um ícone do mau exemplo, também do futebol, assisti uma entrevista de uma mulher à uma emissora de TV. Sorrindo, a especialista brasileira apresentou todo seu currículo: trabalhou em resgate em áreas difíceis, escalou o Everest pelos dois lados, sabia tudo que deveria ser feito, falou em seguro resgate e sobre os recursos necessários para trazer Juliana VIVA! E quando a jornalista resolveu lhe fazer uma pergunta, eu pensei: onde você estava nestes últimos 4 dias? Mas não foi essa. Porque você não correu pra salvar uma irmã em apuros? Também não foi essa.


Do nada surge então o ex-jogador Pato nas notícias, se voluntariando para pagar os custos do traslado do corpo. Mas aí vem a prefeitura da cidade, ou melhor, o PREFEITO, em sua página pessoal, fazendo o mesmo. E, finalmente, o presidente Lula. Que segundo o pai de Juliana, deu todo apoio necessário e possível.


Uma sensação de impotência me cobria, imaginando 4 dias com frio, com fome, sede e sabe-se lá com o que mais. Juliana foi para a terra sem males, mas seu sorriso fica, e uma lição, que se muitos não esquecerem ao fazer a próxima postagem de uma tragédia, será fundamental para evitar novas tragédias que levem o que tem de mais preciosos em nosso país: nosso povo. Enquanto isso acontecia, o congresso votava o aumento de número de deputados, teremos mais 18, ao mesmo tempo em que veta projeto do governo com argumentos de corte de gastos. Oras?!


Quando eu estive na região dos vulcões, senti o poder espiritual que emanavam. A energia divina e
ancestral da natureza potente, ainda que atacada por estes mesmos princípios de ganancia que destroem
o sonho de garotas como Juliana. Os guardiões do vulcão sambem. E se movem, creio eu com fé, pela
justiça, ainda que num tempo diferenciado. Mas nenhuma espiritualidade possível é capaz de me fazer
deixar de chorar, ainda, a cada vez que eu penso que ela sempre acreditou que seria resgatada. E não foi.

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Respostas de 2

  1. Esse caso escancarou a inércia e a ganância que domina o ser humano ao redor do Mundo.
    Mas, mais do que isso escancarou o quanto a sociedade está sempre pronta para julgar e mal dizer uma mulher corajosa e destemida, que corre atrás dos seus sonhos e faz o que a maioria não ousaria.
    A Juliana não ocupa mais esse plano físico mas, sem dúvidas, deixou muito dela em milhares de pessoas. Que a gente use a parte dela que absorvemos para continuar buscando pelos nossos sonhos!

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