A alma feminina do congo

“Iaiá, você vai à Penha?

Me leva ôôô, me levaaa…

Iaiá, você vai à Penha?

Me leva ôôô, me levaaa…”

Quando se fala de congo, essa é a primeira toada que me vem à memória. Cantada em alta voz, ao som da percussão e da casaca, enquanto as mulheres – rainhas do congo – carregam seus estandartes subindo a ladeira do Convento da Penha, em devoção à padroeira do Espírito Santo.

Essa é uma das muitas cenas vivas que compõem a memória afetiva e cultural capixaba. O congo tem papel central na fé popular, na identidade coletiva, e resiste ao preconceito que persiste até hoje.

Desde que atravessei a Terceira Ponte e fiz morada na Serra – o coração populoso do Espírito Santo – passei a contemplar com outros olhos a amplitude do congo e como ele ecoa de ponta a ponta do Estado, construindo histórias, atravessando gerações e abraçando territórios.

Uma vida dedicada ao congo

Fui até a Associação das Bandas de Congo da Serra (ABC) para ouvir uma das grandes guardiãs da tradição congueira no município. A história de Tereza Pimentel, congueira e festeira, é marcada por herança e devoção.

Ela presidiu a associação por 10 anos, cargo que exerceu com profunda paixão e compromisso. Neta e filha de mestres do congo, honra o legado do pai, Antônio Rosa, uma das maiores referências dessa manifestação no Estado.

Desde a infância, Terezinha vive o congo como parte da rotina. Viu o pai liderar a banda Congo Folclórico, especialmente durante a tradicional Festa de São Benedito. Ela própria dançou no congo mirim nos anos 1980, tocou tambor e casaca, e hoje atua como festeira, zelando pela harmonia dos cortejos. 

E esse zelo vem de longe, tecido com cuidado por mãos femininas ao longo do tempo. Tereza relembra que as mulheres sempre ocuparam lugar de destaque no congo — fossem rainhas, princesas ou madrinhas. Hoje, vão além dos enfeites e títulos: conduzem os cortejos, lideram as bandas e mantêm viva a tradição.

Liderança feminina nas bandas de congo

Um dos nomes que exemplificam como as mulheres têm liderado e renovado as tradições do congo é o de Valdirene Lima, mestra da Banda de Congo de São Benedito de Santiago, na zona rural da Serra.

Sua história com o congo nasceu aos 12 anos, quando os tambores chamaram seu coração e o brilho das vestes das rainhas acendeu um sonho em seus olhos. Encantada, mergulhou na tradição — mesmo diante da resistência do pai — e, desde então, há quatro décadas, dança, toca e vive o congo.

Quando o mestre Antônio Freitas, figura central e inspiradora para Valdirene, faleceu, sua história tomou um novo rumo. “Com a perda dele, a banda, que sempre estava cheia de força e cantos, calou”, relembrou.

Foram meses difíceis, até que, com o apoio da então presidente da Associação das Bandas de Congo, Tereza Pimentel, veio a decisão: era hora de continuar — dessa vez, não mais como rainha.

Valdirene carregou essa missão com orgulho. “Troquei a indumentária e passei o vestido para minha sobrinha, Tamires, que está na banda desde os três anos. Ela assumiu com muita responsabilidade o papel de rainha, e eu, o de mestra”, contou com alegria.

Sua função hoje é clara: zelar e defender a cultura, mantendo vivo o legado do congo. E ela sabe que isso vai além de colocar o grupo na rua para tocar. Com orgulho, diz que trocou o vestido pela calça e camiseta de mestra.

“Hoje somos uma das bandas que traz mulheres à frente, tocando, liderando. Quebramos o paradigma de que só homens podiam tocar. E nossas bandas têm a mão das mulheres em tudo: organizando, ornamentando, tocando. E agora, com muito compromisso, liderando também”, finalizou.

A força, a fé e a devoção também estão retratadas na participação das mulheres no congo. Valdirene relembra que, antigamente, o congo era reservado aos homens. “As mulheres só dançavam. Mas nós quebramos essa barreira. Aprendemos a tocar e mostramos que sabemos fazer bonito”, pontuou.

“É difícil não se emocionar ao falar da entrega que temos por essa arte. Eu falo e fico arrepiada. Nosso envolvimento é genuíno. É um momento de devoção. Agradecemos, pedimos saúde, paz e segurança. Na esticada da bandeira, pedimos luz e recebemos bênçãos. Não é uma toada qualquer. É fé e tradição. É lembrar que um povo veio antes de nós e nos deixou algo tão grandioso. O congo é o canto da alma”, completou.

Poesia viva na comunidade

A musicalidade do congo é plural: tambor de acompanhamento, tambor de repique, caixa de madeira com couro de boi, cuíca, triângulo, chocalho, bumbo e a tradicional casaca formam a sonoridade vibrante que ecoa pelas comunidades.

As toadas, heranças de mestres antigos, são composições poéticas que abordam o cotidiano: o mar, a fé, a dor e o amor. “São poesias vivas: muitas nasceram em conversas, deboches, histórias do cotidiano interpretadas pelo jeito único de apitar, de comandar, de cada mestre, de cada comunidade”, explicou Terezinha.

Mas, além da função religiosa, a música e os instrumentos têm também importância social: contribuem para a continuidade da cultura e a integração da comunidade.

Para os mais velhos, o foco é a devoção. Já para crianças e jovens, é a brincadeira que se destaca — uma forma lúdica de vivenciar a tradição até que ela se transforme em algo ainda mais profundo.

Hoje, o município da Serra conta com 19 bandas, sendo 10 tradicionais. Dessas, nove mantêm também bandas mirins — um reflexo do trabalho de preservação e transmissão da herança cultural.

Entre elas estão a Banda de São Benedito e São Sebastião de Nova Almeida, Nossa Senhora da Conceição de Jacaraípe, Jovens de Manguinhos, Cultura Congo de Bicanga, São Benedito e Nossa Senhora do Rosário de Pitanga, São Benedito do Campinho II, Konshaça e Santo Expedito de Serra Sede, Congo Folclórico de São Benedito em São Domingos e São Benedito de Santiago (comunidade rural).

Barco Palermo fica exposto na Associação de bandas de Congo da Serra – Foto: Shirlane Arruda

Ainda temos a puxada do barco Palermo — presente em diversas festas de congo — como uma das expressões mais simbólicas da cultura congueira.

O barco é puxado por uma corda, por milhares de devotos, como forma de pagar promessas, formando um grande cortejo pelas ruas. Remete à chegada dos africanos escravizados, evoca tempos de sofrimento e carrega força e resistência.

A Festa de São Benedito, celebrada nos dias 25 e 26 de dezembro na Serra Sede, é o momento mais esperado do calendário. Começa com a cortada do mastro (no primeiro domingo após o dia 8 de dezembro), passa pela puxada do navio, a fincada do mastro e o encontro de bandas, encerrando-se com a derrubada do mastro.

Cada comunidade tem seu ciclo próprio: em Nova Almeida e Manguinhos, a festa acontece em 20 de janeiro; em Pitanga, em outubro; em Santiago (zona rural), em novembro; e em Jacaraípe, em junho.

A casa de todas as bandas

A Associação das Bandas de Congo da Serra, fundada em 1986, é a mais antiga do Espírito Santo. Surgiu no quintal da casa de Mestre Antônio Rosa, com apoio de muitos amigos da cultura. Hoje, a sede funciona como centro de memória, com exposições, visitas guiadas, oficinas e eventos.

“É a casa de todas as bandas, embora cada comunidade tenha seu espaço. Aqui, é a grande casa do congo da Serra. Um ponto de encontro e de perpetuação da nossa história”, lembrou.

E Terezinha finaliza com um pedido: “Quando virem uma procissão, uma banda, observem com carinho. Reparem como os olhos se fecham quando tocamos, como o tambor pulsa com devoção. Fazemos com respeito. Também queremos ser respeitados. Essa é uma tradição nossa. É uma tradição local”.

A presença de mulheres como Tereza e Valdirene reinventa o compasso das tradições populares. Entre casacas e toadas, é a força da oralidade e da ancestralidade que permite coragem para escrever uma nova narrativa: a da história escrita por mãos e vozes femininas.

Respostas de 11

  1. Mais um texto incrível que dá vontade de ler do início ao fim! É muito bom conhecer um pouco mais da nossa cultura através de um olhar humano e uma boa escrita! 🩷🌟

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