Cantei no chuveiro essa semana, e confesso que há muito tempo não cantava no chuveiro como cantei nesse dia. Começou bem baixinho, a melodia da música surgiu tímida e despretensiosa. Aos poucos, fui soltando meu jeito “comum” de cantar e me aventurei em outras formas de brincar com a minha voz. Juntei com uma percussão vocal, cantei oitava acima, fui experimentando uns ruídos, uns timbres estranhos e fui gostando e me divertindo cada vez mais. Um banho inteiro e uma única música, totalmente maluca e ao mesmo tempo deliciosa. O sentimento convidado pelas palavras veio crescendo, crescendo, crescendo e me tomou tão completamente que eu não sabia quem era eu, quem era a água, quem era a voz, quem era a letra, quem era a música. Éramos uma coisa só, de uma entrega tamanha.
Saí do banho sem conseguir parar de cantar e brincar com a voz e a canção. Quem me ouviu deve ter imaginado que estava muito inspirada, mas não me importei com isso na verdade, consegui apertar o tão sonhado botão do “foda-se”. Aos poucos, a brincadeira foi minguando, minguando…e passou. Ah, como eu gostaria de ser a cantora que eu sou no chuveiro! Me pergunto se todas as cantoras que admiro são, no palco, as mesmas cantoras que elas são no chuveiro (se você for cantora e estiver lendo isso, me responda, por favor!). Se pudesse, faria do chuveiro meu palco, gravaria um disco inteirinho tomando banho.
Quem já me leu por aqui sabe que integração, inteiramente, estar inteira, são palavras e expressões recorrentes, e não à toa. Repito para gravar em mim mesma, para conseguir assentar no corpo o que significa isso de verdade. Durante minha sessão de terapia essa semana até me ocorreu um insight. Compreendi que estar inteira não é conseguir ser por inteiro a totalidade de um atributo, como ser toda a beleza que posso ser, ou ser inteiramente luminosa, por exemplo. Estar inteira é justamente ocupar esse lugar onde a totalidade é composta de mais do que esse único atributo, onde há luz e sombra, há beleza e estranheza, simultaneamente. Estar inteira é ser capaz de habitar o paradoxo, alinha que ao mesmo tempo que divide, faz o encontro dessas polaridades, assim como a coluna vertebral. É ser o “E”: bonito e feio; bom e ruim, como faces da mesma moeda, em que não se separa uma possibilidade da outra. É ser capaz de abrir mão do “OU”, da dualidade, e desacreditar que é possível preencher-se completamente apenas de uma ou de outra coisa. Quem fala disso muito bem, e sempre me inspira em muitas outras camadas é a Ana Thomaz em um vídeo que deixo anexado ao final. Sinto que estar inteira é estar no entre, no vão, na coluna, é estar na presença, e a presença só pode ser o lugar do encontro por ser este receptivo-espaço-vazio-etérico-preenchido-de-silêncio, onde as polaridades se somam, se complementam e se neutralizam como fases de ondas sonoras que se sobrepõem.
Tal pensamento pode soar como uma obviedade obtusa, mas assentar os pensamentos no corpo, encarná-los e vivê-los é o processo de uma vida inteira. O tempo do corpo, que é terra, é infinitamente mais lento que o tempo da mente, elemento ar. Estamos acostumados a um ritmo frenético que nos coloca em movimento antes mesmo de sentirmos nossos pés no chão. Por isso acredito ser importante que estejamos mais aterrados para que a observação de nós mesmos seja possível. Ao estabelecer outra relação com o tempo, podemos acessar outro estado de consciência para adentrar em nosso âmago. É imprescindível praticar esta quiropraxia cotidianamente, e repetir, repetir, repetir, isto é: escutar nosso corpo, nosso silêncio, nossa respiração. Escutar não apenas com os ouvidos, mas com todos os recursos sensíveis que nosso corpo possui. E no corpo, a respiração é a primeira guardiã da terra e do aterramento.
No entanto, ainda é necessário dizer: eu quero ser cada vez mais a cantora que sou no chuveiro, cheia de coragem de testar ideias absurdas, assim como quero que você também possa ser uma pessoa mais livre, espontânea e criativa, cada vez mais imbuída dessa energia lúdica e alegre que o ar traz no riso de sua essência. Para mim, não me interessa uma realidade onde somente poucos possam desfrutar dessa liberdade, quero espaços que nos acolham, onde possamos ser livres para errar, errar, e errar tudo o que tiver para errar diante de mais alguém. Espaços de troca com afeto, presença e gargalhada, muita gargalhada. Não te parece vital e próspero desejar por algo assim?
Costumo duvidar que esses processos são solitários, que apenas eu e mais ninguém esteja atravessando uma crise desse tipo. Não há nada que me faça especial o suficiente para estar sozinha nessa travessia. Trago, então, essa proposta coletiva à público: O que aconteceria se fossemos aquelas que somos quando cantamos no chuveiro? Essa temporada de Netuno e Saturno em Áries que se inicia talvez nos fortaleça exatamente isso: o risco que precisamos correr para atravessar o caminho entre o chuveiro e o palco (qualquer que seja o seu chuveiro e o seu palco). O risco de não ser belo, nem bom, nem perfeito. O risco de ser estranho e feio, ou do que achamos que julgariam estranho e feio. Sim, temos medo de sermos julgadas. “Você pode me ajudar? Eu tive uma ideia e estou com medo de ser julgada pelas pessoas.” – ouvi da minha namorada essa semana. E nessa curiosa ressonância de assuntos, o fogo de Áries parece já atiçar a potência da concepção dos novos contornos, dando origem à novas estruturas dessa identidade tão impetuosa e espontânea em nós – até sermos capazes de sustentar e habitar o encontro de si consigo mesmo.


Artista LGBT, cantora, compositora e bacharela em Música Popular (UNICAMP). Professora de canto desde 2011 e pesquisadora em corpo-voz-expressão. Integra o grupo Kundengo. Lançou “Madrugada Chegou”(2019). Em 2025, prepara seu segundo álbum.