Eu não quero ser guerreira

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Eu não quero ser guerreira

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Quando leio sobre desromantização da maternidade é muito comum esbarrar no “mas”, essa palavrinha que funciona como um salvo conduto para algumas das mães que ousam falar sobre as partes feias do maternar. Funciona assim: “odeio ser mãe, mas amo meus filhos”, a princípio não há nada de errado na afirmação, o problema reside no fato de que parece que precisamos justificar que nosso desconforto não está na existência dos filhos, quando, na verdade, também está, às vezes em maior, às vezes em menor medida. 

Quando eu li Não me chame de mãe, da escritora paranaense Adriana Moro, publicado pela editora Urutau, me surpreendi ao esbarrar, logo nas primeiras páginas, com a narradora afirmando: “Quando a menina nasceu, o que senti não foi exatamente amor. Foi medo. Medo ao perceber que ela estaria para sempre ali, e eu nunca mais estaria sozinha.”

Um aspecto interessante que o livro aborda é a construção do amor. Durante a gravidez a mulher está sujeita a alterações hormonais e fatores ambientais que provocam uma avalanche de sentimentos, nomeá-los é complexo, mesmo uma gravidez desejada, planejada, carrega uma boa dose de incerteza, muitas futuras mães querem amar seus filhos desde a descoberta, mas isto é apenas uma expectativa de amor, porque ele só pode se concretizar a medida que a relação filial se estabelecer, tanto isso é verdade que o organismo materno se enche de ocitocina depois do parto, isso porque o corpo precisa ser estimulado a estabelecer um vínculo, não à toa ele é apelidado de “hormônio do amor”, nosso corpo precisa desse impulso químico para aprender amar e criar afeto, não é algo instantâneo mas biológico.

Além disso, a mãe que narra essa história tem um pano de fundo muito comum e, se não pouco abordado, diminuído em importância nas outras narrativas que li sobre o tema: ela é pobre, criada nos preceitos evangélicos, cheia de sonhos e jovem, nem tanto que possa ser considerada ingênua nem tão pouco pra ter a maturidade necessária para lidar com os desafios de uma vida a dois com um bebê chorão a tiracolo e o preconceito de uma comunidade por sua suposta falha de conduta.

Em geral, as mães recém-paridas enfrentam uma grande solidão, o ordinário são companheiros que se ausentam, seja porque estão trabalhando e com isso acham que não precisam participar dos primeiros meses do bebê, seja porque sequer dividem o mesmo ambiente onde a criança e a mãe vivem. No caso dessa história, a narradora enfrenta o afastamento da comunidade religiosa que frequentava, a falta da mãe e de amigas e o abandono do pai da criança sem qualquer aviso prévio ou suporte financeiro.

A narradora reflete sobre sua solidão e desamparo: “O fato é que ninguém nunca perguntou se eu precisava de alguma ajuda. Os olhos cristãos, silenciosos, me apedrejavam em pensamentos.”

Ser mãe não tem manual, não tem cartilha, guia ou roteiro que mostre o caminho a ser percorrido com a chegada do filho. Uma pessoa que cresce sem irmãos ou primos e, sequer dispôs de bonecas na infância, como acontece à mãe deste livro, certamente encontrará mais dificuldades para se adaptar, afinal as crianças não têm termômetro pra indicar se o choro está dentro do normal ou se está passando dos limites e, sem uma comunidade para ajudar a enxergar esses sinais, como esperar que alguém, sozinha, sem dinheiro e lutando para garantir a próxima refeição, esteja pronta pra lidar com uma deficiência, uma carga que vai exigir ainda mais força pra arrastar essa vida tão cheia de desafios? 

Não bastasse tudo, teve a pandemia, esse período sombrio que ainda precisa ser investigado pela literatura, não só pelo impacto da doença nas pessoas, mas também pelo isolamento que promoveu. Um redemoinho que engoliu muita gente e acaba engolindo essa mulher que no auge da sua aflição, grita: “Não me chame de mãe.”

Aqui, convém destacar um pouco da biografia da autora, Adriana Moro é enfermeira de saúde mental, pós-doutora em saúde pública, e sabe de dentro do sistema o que foi a pandemia da covid-19 para os brasileiros, não só pelo drama do adoecimento em massa da população, mas pelos obstáculos impostos aos profissionais de saúde sérios que tentavam minimizar seus danos.

Este livro me incomodou como costuma acontecer com bons livros, porque mesmo para debater a desromantização da maternidade é imprescindível a discussão dos privilégios de classe. Se é fato que o nascimento de um filho é um divisor de águas na vida de uma mulher, também o é que nem sempre isso é para melhor e admiti-lo não tem nada a ver com amor ou a falta dele, às vezes tem a ver com a falta de garantia de acesso ao mínimo necessário para sobreviver: casa, comida e acesso a tratamento de saúde, “onde come um comem dois” só é possível na fartura e isso fica escancarado neste enredo. 

Há muitas camadas para discussão desta história e a mais sensível delas, a meu ver, é a constatação de que desejando ou não a gravidez, qualquer mulher está sujeita ao nascimento de uma criança com algum tipo de deficiência. Algumas mulheres têm rede de apoio, outras conseguem pagar pela ajuda no trabalho de cuidado, mas há muitas que não têm nem um e nem outro, e nada vai mudar o fato de que a criança precisará ser cuidada e acompanhada por profissionais especializados, então, como lidar com isso num ambiente tão austero será o grande desafio para esta protagonista cuja vida está por um fio. 

Viver a maternidade é diferente para cada mulher a partir de seus atravessamentos, a desromantização passa por reconhecer que esse momento não é igual para todas e tão pouco repercute da mesma maneira na vida de cada uma. É possível experimentar desde o apagamento da sua identidade, o afastamento de seu círculo de convivência social, o adoecimento físico e psíquico, até o abandono do companheiro e muito mais. Uma mulher que não gosta de ser mãe não precisa justificar que ama seu filho apesar disso, porque mesmo o amor é difícil de ser construído num terreno tão instável. 

Encaminhando-se para o fim, a narradora reflete: “Segui a caminho do corredor, tentando só pensar em fazer o melhor dentro das minhas possibilidades (…)”. As responsabilidades que nascem com a indução de um novo ser humano no mundo são muitas. As mães criam os patrões e empregados de alguém, os maridos e esposas, os amigos e amigas, um filho não é um bibelô é um indivíduo dotado de habilidades e dificuldades, uma mulher que não enxerga o peso de assumir essa responsabilidade de forma integral tem grande chances de ver sua vida passar sem vivê-la afundada até o pescoço nas demandas de um modelo de maternidade esmagador.

Em seu livro, Moro mostra quase graficamente o sofrimento causado pela omissão da sociedade no amparo a uma mulher que pare. De fato, muitas conseguem superar as dificuldades e desafios sozinhas, mas será que tem que ser assim? Quem se beneficia com a existência das guerreiras? Já é hora de pensar se o modelo socialmente cobrado de maternidade é o justo, ou melhor, se é digno e qual o papel que cada um exerce na sua perpetuação. Foi isso tudo que este livro me fez pensar, leitura recomendada.

Conheça mais sobre a Adriana através do site e do seu livro “Não me chame de mãe”

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Respostas de 2

  1. O livro da Adriana é forte, ousa quebrar estigmas e, por isso, também trata de delicadezas.
    A tua análise da questão de que não se enalteça o ser guerreira é também uma forte delicadeza a ser refletida.

  2. Monique, muito obrigada pela leitura cuidadosa. Pelas palavras sobre o qu escrevi. Quando alguém jos lê também reescreve aquilo que desejamos comunicar e você fez isso lindamente e com muita propriedade. Obrigada mais uma vez.

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