Coletivo Feminista Literário reúne autoras do Brasil e do exterior
“Mas se tem algo que aprendo com a literatura é que o pessoal e o coletivo andam juntos, e quando o íntimo toma forma de palavra, outras pessoas podem encontrar sentido no que parecia tão particular.”
(Gabriela Mayer)
“Há cerca de nove anos, surgiu o Mulherio das Letras, um movimento inteiramente horizontal, livre de burocracia e de hierarquias. Surgiu de um grupo de escritoras que, num grande evento literário, notavam serem a maioria no público e sabiam que, segundo muitas pesquisas, as mulheres leem mais do que os homens; nas ‘mesas’ dos eventos, porém, assim como nos catálogos das grandes editoras, eram uma reduzidíssima minoria. Articularam-se, então, através de ‘redes sociais’ e descobriram que sim, as mulheres escrevem, e muito. Desde então, o movimento cresceu, espalhou-se por todo o Brasil e por outros países, com milhares de participantes, as mulheres passaram a ocupar mais espaço no mundo literário, ninguém mais vai convencê-las de que ‘mulheres não escrevem’ e provou-se que a colaboração e a solidariedade são muito mais fecundas do que a competição.”
Na fala acima, de forma bem sucinta, a escritora Maria Valéria Rezende explica, para a elaboração deste texto, o que é o Mulherio das Letras, criado a partir de um grupo de rede social e se tornou Coletivo Feminista Literário, hoje com mais de sete mil participantes no Brasil e no exterior.
O Mulherio das Letras nasceu espontaneamente em 2016. Em encontros informais de escritoras nos diversos eventos literários do país, autoras, editoras e profissionais de outros segmentos ligados à produção literária sempre constatavam a diminuta participação de mulheres nesses eventos. Fosse em mesas de debates, palestras ou entre os títulos à venda nas feiras e festivais, mulheres tinham pouca ou nenhuma visibilidade.
Tal invisibilidade é constatada em estudo sobre o perfil do romancista brasileiro (Revista Cult, 2018), da pesquisadora Regina Dalcastagnè, da UnB: “Ele é homem, branco, de classe média, nascido no eixo Rio-São Paulo”. O estudo, iniciado em 2003 pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília, coordenado por Regina Dalcastagnè, analisou 692 romances escritos por 383 autores em três períodos distintos: de 1965 a 1979, de 1990 a 2004 e de 2005 a 2014. A conclusão, entre os demais itens analisados, é que em 2014, mais de 70% das obras publicadas por cinco das maiores editoras do país eram escritas por homens.
Num desses encontros informais, num bate-papo entre Maria Valéria e outras autoras em que o tema era a ausência da mulher na literatura, surgiu a ideia: “Por que não formamos um grupo para juntarmos esse mulherio das letras?”. E assim o movimento foi gestado, com a criação de um grupo no Facebook, onde seria mais prático convidar e agrupar não só escritoras, mas também ilustradoras, designers, pesquisadoras, docentes universitárias, jornalistas, editoras, agentes literárias, dramaturgas, estudantes de Letras, “interessadas na expressão pela palavra escrita e oral, (…) que se propõem a discutir as questões da mulher nas áreas da arte e da cultura” (Carta Aberta do Mulherio das Letras, 2018).
O objetivo era promover a integração, para que se conhecessem, trocassem informações e experiências; para que acessassem os projetos umas das outras e, principalmente, estimular a produção, publicação e promover ajuda mútua em todo o processo, da escrita à publicação de um livro. O principal fundamento: é vetada a participação de homens, seja como integrantes, seja em postagens em que são citados. Como disse Maria Valéria Rezende, na época, “eles já tiveram e ainda têm suas oportunidades, histórica e culturalmente. É hora de falarmos entre nós, sobre nós, sem interferências masculinas”.
Maria Valéria Rezende
Chamada de musa do Mulherio, denominação que recusa, sorridente, debochada ou mesmo com uma torcida de nariz, Maria Valéria Rezende (Santos/SP, 1942) é freira missionária da Congregação de Nossa Senhora, Cônegas de Santo Agostinho, autora de Quarenta dias (Jabuti 2019) e Outros cantos (Casa de Las Américas 2017), entre muitos outros, dedicou-se à educação popular, atuando em diferentes regiões do país e em todos os continentes, em programas de formação de educadores e desde 1988 mora em João Pessoa/PB.
Sempre questionada sobre sua escolha pela vida religiosa, ela ressalta a “ignorância absoluta em relação às freiras. Imaginam que a pessoa vai ser freira e fica ali toda reprimida, trancada”. E não é bem assim, segundo explicou em entrevista ao Jornal El País, em fevereiro de 2017.
“(…) somos leigas, ou seja, não somos membros do clero. Apenas optamos por viver em comunidade (…) Ainda assim, as pessoas têm aquela ideia de que as freiras são meio bobinhas, meio burrinhas… Como pode escrever literatura e ainda ganhar prêmio?” Inclusive, muitos jornais – tranquilamente, sem me perguntar nada – escrevem que sou ‘ex-freira’. Porque para eles é inconcebível que uma freira que continua a ser freira tenha o mínimo de inteligência. O fato é que nossa vida é o contrário do que propaga o modelito oficial.” (El País, 2017)
A resposta acima, na entrevista ao jornal, dá uma ideia do espírito de grandeza, de entendimento do comunitário, ao mesmo tempo em que se mostra bem-humorada e tem sempre a palavra certa no momento certo, tanto para criar o novo, quanto para interromper o que não funciona e imediatamente inventar outro jeito.
Expansão
“Não há um lugarzinho escondido que não possa ter ali um Mulherio das Letras”, disse Maria Valéria Rezende, na reunião de avaliação do III Encontro Nacional, em Natal/RN, em 2019.
A essa altura, o Mulherio das Letras já contava com grupos regionais espalhados por todo o Brasil e no exterior, ideia lançada antes do primeiro encontro, em 2017, quando mulheres de vários estados brasileiros já chegaram a João Pessoa organizadas. Entre eles, Brasília, Rio de Janeiro, Paraná, Rio Grande de Sul. Atualmente, o Mulherio das Letras tem suas ramificações em todas as regiões do país, alguns pausados, outros desativados, e ainda outros em processo de reativação.
Esses grupos organizam e realizam seus próprios encontros e eventos diversos, apoiam a produção literária de mulheres locais, têm seus clubes de leitura, grupos de estudos, criam e promovem projetos junto a escolas locais, têm participação em manifestações como as do 8 de março e apoiam movimentos junto à comunidade LGBTQIA+.
Encontros Nacionais
Criar um grupo em rede social foi pouco diante da ânsia das mulheres em se conhecerem, se juntarem em um grande encontro, se confraternizarem e trocar desde vivências a olhares e abraços festivos. Assim foi idealizado o I Encontro Nacional do Mulherio das Letras, no ano seguinte da fundação do grupo.
Realizado em João Pessoa/PB, em outubro de 2017, durante quatro dias cerca de quinhentas mulheres envolvidas com a produção literária se encontraram no Centro Cultural José Lins do Rego, para participar de uma programação intensa e diversificada. O grande diferencial desse encontro é que, seguindo os principais fundamentos do Mulherio das Letras, é ser exclusivo para mulheres e todas as atividades são votadas e decididas de modo horizontal, por meio de enquetes e discussões no grupo do Facebook, chamado por todas de grupão.
Dentre as atividades da programação, mantidas nos encontros posteriores, o encontro conta com rodas de conversa, oficinas, lançamentos coletivos, reunião de avaliação final e assembleia para proposição e votação da cidade sede do próximo encontro. Como atividades alternativas, saraus, painéis, esquetes teatrais, apresentações musicais e de dança etc. Definiu-se, ainda, a autora Maria Firmina dos Reis para ser homenageada (futuramente denominada de “mulherageada”) no primeiro encontro, que teve a participação de Conceição Evaristo na cerimônia de abertura.
Não é evento, é encontro
Outro diferencial pensado e discutido na idealização do primeiro Encontro é que fosse livre, sem palestra, mesa-redonda, sem monopólio de microfone, sem que uma fale e as outras apenas escutem. Que não deveria ser chamado de festa, feira ou festival, como também não é evento acadêmico, como congresso ou simpósio. É um grande encontro, entre as escritoras e produtoras de literatura, que têm uma única oportunidade ao ano de estarem próximas, que querem estar juntas para conversar entre si, para confraternizar, para trocar opiniões e vivências nas rodas de conversas sobre os temas que escolhem nas enquetes do grupão; para ministrar e participar de oficinas em que aquela que tem mais conhecimento sobre algo possa oferecê-lo gratuitamente às outras, com a finalidade de proporcionar crescimento coletivo.
Por esse motivo é fundamento do Mulherio das Letras a não participação de homens nas rodas de conversas e nas oficinas (exceto nas atividades abertas ao público, como lançamentos de livros e programação em auditório), pois são momentos em que as mulheres falam livremente, são ouvidas e expõem, inclusive, questões íntimas, sem mediação. A troca é livre, não há comando, é fluida.
Encontros posteriores: 2018 – Guarujá/SP; 2019 – Natal/RN; 2022 – On line (Pandemia de Covid-19), organizado pelo Mulherio Regional do Rio Grande do Sul; 2022 – João Pessoa/PB; 2023 – Rio de Janeiro/RJ; 2024 – Belém/PA.
Conquistas
O mulherio se motivou a escrever e a publicar. Incontáveis títulos foram lançados por integrantes do Mulherio das Letras nesses oito anos. Não há um dia que não se publique uma postagem no grupão anunciando um lançamento. Afora as publicações individuais, há as coletâneas de crônicas, contos, poesias, artigos, manifestos, ‘mulheragens’. Merece destaque a I Coleção de Livros de Bolso do Mulherio das Letras (Venas Abiertas, 2019), organizada pela escritora Karine Bassi, finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020, na categoria Inovação: Fomento à Leitura.
O Coletivo Feminista Literário cumpre até aqui um de seus principais objetivos, de estimular a literatura produzida por mulheres, num espaço e num movimento exclusivo de trocas de saberes, de ajuda mútua e de discussões de rumos.
Desafios
Dalila Teles Veras, de Santo André/SP, poeta e Doutora Honoris Causa pela Universidade do ABC é veterana no Mulherio das Letras. Conhecedora de premissas e fundamentos do Mulherio das Letras, enfatiza a urgência de reavivar no movimento o sentido de feminismo, do empenho coletivo nesse intuito. Em entrevista para a elaboração deste texto, expôs suas considerações:
“Não podemos abandonar as premissas do grupo, como a luta pelos direitos, igualdade, equidade. Não podemos esquecer o trabalho colaborativo de divulgarmos umas às outras. Mas precisamos de mais debate. Tivemos recentemente uma discussão importantíssima sobre a questão dos homens no mercado editorial, o que eles ainda fazem arbitrariamente em relação às mulheres, a redução da mulher a objeto. Descobrimos que infelizmente isso continua valendo, tristemente valendo. Então, percebo que deveríamos insistir em reforçar essas premissas, para que as integrantes do Mulherio considerassem esse movimento de fato feminista e com tudo que o feminismo hoje requer e precisa. Debates qualificados são necessários. São muitos os desafios.”
Propositora da cidade de Florianópolis/SC, sede do Encontro Nacional de 2025 e responsável pelo encontro junto com integrantes locais, Flávia Quintanilha, poeta e editora do Jornal Poesia(A), não só tem a missão de enfrentar as dificuldades, contratempos e uma série de reveses que impõe a organização, como também manifestar e colocar em discussão os desafios que o Mulherio das Letras tem a encarar, diante do exposto por Dalila Teles Veras.
De acordo com Flávia Quintanilha, que também foi entrevistada para a feitura deste texto, o momento é propício para rever a vocação do movimento:
“Penso que o Mulherio das Letras atua como uma imensa clareira democrática com uma raiz feminista. Nesse sentido é seu papel abrir possíveis momentos de fala e de publicação para que todas as escritoras, sobretudo as novas escritoras, encontrem seus espaços. O mulherio tem uma dupla vocação: de movimento literário, que propõe novas vertentes dentro desse manancial que é a literatura; mas também a de coletivo feminista de escritoras mulheres, com um grande caminho ainda a se percorrer.”
Há muitas vitórias a celebrar, porém mais ainda a discutir, criar, unir forças para que o Coletivo Feminista Literário Mulherio das Letras alce voos mais altos e seguros na promoção da colaboração mútua, premissa básica de um coletivo. Como acentuou Dalila Teles Veras, debates qualificados são fundamentais nesse sentido.
Para encerrar, deixo um trecho do livro “Por uma crítica feminista – leituras transversais de escritoras brasileiras”, de Eurídice Figueiredo, concebido em outro contexto, mas que julgo caber perfeitamente aqui:
“(…) algum nó foi desatado, as línguas se soltaram, as escritoras tornaram-se sujeitos de sua história e começaram a criar personagens que tentam, desesperadamente, se tornar sujeitos de sua história (…).” (2020, p.96)
* Artigo publicado originalmente na terceira edição da Ocupação Mulheres, no blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS)
Referências
FIGUEIREDO, Eurídice. Por uma crítica feminista – leituras transversais de escritoras brasileiras. Editora Zouk. Porto Alegre, 2020.
MASSUELA, Amanda. Quem é e sobre o que escreve o autor brasileiro?. Cult, São Paulo, 05/02/2018. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/quem-e-e-sobre-o-que-escreve-o-autor-brasileiro/
MORAES, Camila. Maria Valéria Rezende: “As pessoas pensam que freiras são bobinhas. Como podem escrever literatura?”. El País, São Paulo, 24/02/2017. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/02/20/cultura/1487625634_391058.html
__________. Carta Aberta do Mulherio das Letras. Comissão de redação: MORAES, Cátia; VERAS, Dalila Teles; DAMACENO, Giovana; MARTINS, Lindevânia; VASCONCELOS, Patrícia; SOUZA, Rejane; CHRISPIM, Rosana. Guarujá-SP, 04/11/2018. Acesso no Grupo Nacional Mulherio das Letras. Facebook, em “Arquivos do Grupo”.