Livro reúne cartas de 103 psicanalistas brasileiras

Organizado pela psicanalista e doutoranda em Patrimônio Cultural e Sociedade, Ana Cristina R. Bernardes, e publicado pela Calligraphie Editora, no mês de maio, o livro tem como proposta a transmissão da experiência psicanalítica de analistas mais experientes para jovens analistas que estão começando a prática clínica. 

É um livro dedicado às alunas, analisantes, supervisionandas e também às colegas e autoras que se juntaram nesse coletivo (@coletaneamulheriobrasileiro) e toparam essa aposta do projeto desejando através da escrita compartilhar algo de si e do seu estilo. Cada uma  – uma a uma – com sua territorialidade, linguagem e sotaque, pois algumas exercem o ofício fora do Brasil. 

Segundo a organizadora Ana Cristina C. Bernardes, o livro é um documento que passa a fazer parte do patrimônio literário das mulheres brasileiras que exercerm a psicanálise.  “O que deságua neste livro é a ideia de transmissão pela rememoração de histórias, cada qual com a sua. A importância da memória no gênero literário – cartas, nos mostra, além de sua plurivocidade, a importância de em uma teoria da transmissão, uma efervescência de escritas, variedade de sons, tons, vibrações e cores. Assegurar uma transmissão por meio deste gênero literário – cartas, é construir uma outra infraestrutura discursiva, é burilar narrativas produzidas historicamente, cada qual de seu lugar, de sua memória, pois somos testemunhas oculares de um tempo. Este gênero literário nos oferece modos alternativos de conhecer outras realidades, é um órgão vivo, pois, ao gerar fontes, estamos urdindo tramas com novas versões até então limitadas. Sabemos que o estudo das fontes é importante, por isso, criar e formar fontes é um modo de produzir conhecimentos históricos além de servir para futuros trabalhos analíticos”.

A psicanalista Isadora Machado assina a orelha da obra e diz: “Este livro, ao propor a veiculação de cartas escritas por analistas, mulheres, também marca um acontecimento inaugural, que busca levar adiante – e talvez de um outro modo – algo da psicanálise, uma aposta na transmissão, no inconsciente e no feminino. É importante lembrar, que ainda não tínhamos nada parecido publicado, que fosse escrito por mulheres, ou por uma mulher. A carta, tomada não como um objeto a ser perseguido, mas como um significante, permite que nos desloquemos diante da letra, deste impronunciável associado à mulher, da impossibilidade de dizermos o que é a mulher para, sim, escrever uma mulher, mulheres plurais e diversas que somos. Escrever a carta como quem prepara a sua partida deste “continente desconhecido”, estranho (unheimlich), o “continente negro” remetido também à África da qual nada queremos saber como brasileiros. A carta na sua condição ético-política que arranca do silêncio os nossos desejos de escrita e potência. Este livro, ao propor a veiculação de cartas escritas por analistas, mulheres, também marca um acontecimento inaugural, que busca levar adiante – e talvez de um outro modo – algo da psicanálise, uma aposta na transmissão, no inconsciente e no feminino”. 

A capa do livro é uma verdadeira obra de arte e é assinada pelo artista Nestor Jr.  O livro será lançado em várias cidades brasileiras, começando por São Paulo, seguida de Porto Alegre, Rio de Janeiro e Curitiba. E a partir do final do mês disponível para compra no site da editora www.calligraphieeditora.com.br.

Uma carta sempre chega ao seu destino?

Quando recebi o convite para escrever uma carta a jovens analistas, antes mesmo de pensar no que escreveria, fui fisgada pelo significante “jovem”. Afinal, o que seria uma “jovem” analista?  Teria a ver com a idade cronológica e o frescor da juventude, com aquela que ainda está começando a sua jornada clínica em seu consultório e tem pouco tempo de percurso ou seria aquela que ainda está às voltas com o “autorizar-se”? Ou uma jovem analista seria aquela que reatualiza a sua clínica dia a dia a cada nova escuta? A que escuta o sujeito, mas na subjetividade de sua época? Aquela que causada pelo desejo se propõe a escutar o inconsciente? 

O convite também me fez reatualizar a pergunta que me faço com frequência e de tempos em tempos. Por que a Psicanálise? Por que psicanalista? O jornalismo, que antecede a psicanálise, despertou em mim o gosto pelas palavras, o sabor da escrita e a atenção na escuta. O divã, em que me deitei, a fim de me a ver com os meus sintomas, inibições e angústias apontaram para o desejo inconsciente. E cá estou…

Embalada pelas letras de José Saramago: “Daí  que resulte urgente podar as palavras para que a plantação se converta em colheita. Daí que as palavras sejam instrumento de morte ou de salvação. Daí que a palavra só valha o que vale o silêncio do ato”. 

A psicanálise – arte da palavra e do inconsciente. Mas, afinal, o que faz a Psicanálise? A Psicanálise implica em escutar as questões singulares, ambíguas e, por vezes, perturbadoras daquela que sofre. Portanto, daquela que vive!

Voltando às cartas, me remeto ao texto de abertura dos Escritos, no qual Lacan se faz a seguinte pergunta, capturado pelo conto de Edgard Allan Poe, em A carta roubada: será que toda carta chega ao seu destino?  Penso que na clínica, o par analista-analisante lida com os extravios, endereçamentos, pontuações, interpretações, pausas, silêncios, enganos, mal-ditos… em um “rasgar-se e remendar-se”, como diria Guimarães Rosa, em um tempo outro que implica recordar, repetir e elaborar, como propunha Freud.

Do amor pelo saber à paixão pela ignorância. Do divã à polis. No enodamento da neurose de cada dia. Quais os desafios e impasses da formação de uma analista? Como estar à altura da subjetividade de uma época? É preciso estar atenta aos efeitos do tempo histórico e à subjetividade que ele corresponde. Se a teoria nos forja, a prática clínica nos convoca. 

Nos convoca a pensar desde Freud, sabendo que a Histeria funda a Psicanálise, mas que hoje nos perguntamos sobre uma psicanálise feminista e decolonial e quais narrativas possíveis entre esses dois campos – Psicanálise e Feminismo. Nos indaga sobre os desafios e paradigmas da sociedade contemporânea e quais os (mal) estares em jogo: o tornar-se mulher não é mais correlativo à maternidade como supôs  Freud, pois para pensar a feminilidade há de se dar um passo e uma volta a mais; nos indaga sobre a nova masculinidade que emerge da nova paternidade; que quando pensamos em criança, é urgente questionar as diferentes infâncias e seus impactos sobre esses sujeitos; nos interroga sobre o adolescer no século 21; da cibercultura na era digital e o seu impacto nos sujeitos e nos laços sociais; das sexualidades queer; do ocupar-se a pensar uma clínica antirracista e decolonial, levando em conta os recortes de classe, raça e gênero. 

Creio que as cartas datam um momento e são boas condutoras de transmissão, de esperança, de memórias, de testemunhos, de reflexões, de amores, de paixões.  Foi a carta de Sigmund Freud que trouxe alento para a mãe de uma jovem homossexual, em 1935; a carta de Einstein endereçada a Freud, em 1932, onde ele se perguntava se existia alguma forma de livrar a humanidade da guerra;  a carta escrita por Frida Kahlo para Diego Rivera, em 1953, um ano antes de sua morte, escrita enquanto ela aguardava a cirurgia para amputar a perna; as mais de 200 cartas que Vincent Van Gogh trocou com seu irmão Théo; a carta que Franz Kafka escreveu para o seu pai, mas nunca enviou, publicada 26 anos após a sua morte nas “Obras reunidas” do autor; a carta a um jovem terapeuta do psicanalista Contardo Calligaris; e as cartas de psicanalistas ao caro Dr. Freud, coletânea organizada por Gilson Iannini, como respostas do século XXI a uma carta sobre homossexualidade. 

E a carta-convite de uma psicanalista para outra. O que diz sobre quem convida e sobre quem é convidada? Que precisamos e devemos estar sempre (em) causa. Desejar é o que nos move! Que nos interrogar, nos faz avançar! 

Pois bem, jovem analista! Digo que o percurso é longo; a formação é contínua; a inquietação é constante; o manejo é sempre uma aposta que só saberemos seu efeito à posteriori; a análise é terminável; a analista não dá “alta” a sua analisante, mas a faz capaz de saber fazer com o seu sintoma; que dirigimos o tratamento e não nossa analisante; que a Psicanálise não cura (mas fazendo uma analogia com a cura do queijo), é ter no horizonte que a maturação leva tempo… Que a Psicanálise não promete felicidade…

Que a cada vez que abrimos a porta do consultório e fazemos o convite para que a analisante se deite no nosso divã reatualizamos o desejo da analista e o compromisso com a ética!

Tenta. Fracassa. Não importa. Tenta outra vez. Fracassa de novo. Fracassa melhor. (Samuel Beckett).

Saiba mais:

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@calligraphieeditora

@coletaneamulheriobrasileiro 

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