E AS BRECHAS ESTAVAM AQUI DESDE O INÍCIO

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E AS BRECHAS ESTAVAM AQUI DESDE O INÍCIO

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Na minha história, existe uma narrativa que se repete há muito tempo, e por muito, muito tempo olhei pra essa situação com tristeza, com pesar. É muito recente a possibilidade de uma leitura positiva dos constantes acontecimentos que reforçaram minha sensação de não-pertencimento. Entendo que esse desejo é algo comum a nós humanos: queremos pertencer, fazer parte, ser incluídos, lembrados, amados. Quem não quer? Talvez quem já se sente pertencente desde cedo, quem se encaixa quase sem querer em algum padrão estético, ou de comportamento, de pensamento, ou até tudo isso ao mesmo tempo. Comigo não foi assim.

Já contei anteriormente que venho de uma cidade do interior de São Paulo, onde sempre me percebi diferente demais para me sentir pertencente e   bastante desconfortável para me acomodar. Meus desejos e sonhos não combinavam com as regras de pertencimento dali, vivi naquela cidade me sentindo um belo peixe fora d’água. Demorei, mas percebi a beleza dessas circunstancias: Meu lugar era outro.

Quando me mudei pra Campinas, pra cursar música popular na Unicamp, imaginei que me sentiria dentre os meus. Ansiava por conviver com mais gente fazendo música, respirando arte, pensando diferente da cultura opressora e dominante da qual eu vinha. Durante os anos que estive por lá, ainda não se falava em feminismo nos corredores da universidade, o machismo fazia questão de me ‘colocar no meu lugar’ encapsulado e apertadinho, e outros grupos mais privilegiados silenciosamente demonstravam sua superioridade financeira e cultural. Me enturmei onde foi possível, realizando aqueles pequenos ajustes pra caber um pouquinho aqui e ali, coisa que a gente faz frequentemente nessa busca por pertencer. Anos depois reconheci muitos desses ajustes e venho me despindo deles, um a um. Tudo bem não me identificar com aquele grupo, meu lugar era outro.

As demonstrações dessa narrativa seguiram por anos. Minha terapeuta, recentemente, me propôs nomear esse não-lugar onde eu sentia que constantemente ficava. Nem dentro, nem fora. Nem pertencente, nem não-pertencente. Aos poucos foram surgindo imagens desse lugar ENTRE, que entrelaça, que comunica (como não lembrar das brechas?). Um lugar como uma ponte que une territórios; um lugar como a garganta, que expressa o que se passa dentro de nós para quem está fora e não faz idéia da nossa percepção sobre a vida. Um lugar de passagem, de travessia, como um portal que separa-une ambientes e realidades; um lugar de mediação, como um mensageiro, um Exu, um xamã. Todos são lugares que não pertencem nem a um ponto, nem a outro, mas a ambos e portanto estabelecem CONEXÃO entre eles.

Recentemente, tive a oportunidade de estar em diálogos que contribuíram para dar ainda mais contorno a esse estar entre lugares. Em um café da manhã de domingo, desses bem preguiçosos e que podem se estender em longos papos filosóficos, estava com minha namorada, Iza Caldeira, e ela me contava sobre o encontro da semana do grupo que tem feito parte, o Coletivo Futuro Possível, guiado por Lua Couto. Discorriam sobre processos de regeneração e os 4 princípios da vida, baseados no livro The Systems of Life (Fritjof Capra). O que mais lhe chamou a atenção foi o fato de que a inteligência da vida, a cognição, é um processo que acontece nas bordas, no encontro entre um organismo vivo e o ambiente com o qual interage.

Terceiro olho aberto. Nossa visão nos levou até à membrana das células, que sabiamente comunica o exterior com o núcleo; à pele, que nos informa precisamente as condições do ambiente à nossa volta, através de calor, suor, arrepios e outras sensações mais sutis; e até mesmo às regiões periféricas da cidade e sua população, que percebem mais intensamente o contraste ao transitar entre o centro e regiões menos urbanizadas, e em maior contato com os outros ecossistemas ao redor. Fui remetida ao ENTRE, à minha história, e a todos os nomes que seguiram surgindo ao que inicialmente parecia ser um não-lugar.

Em uma noite de bar depois de um longo ensaio do Kundengo, Zuza Gonçalves, que sempre gosta puxar assuntos que podem nos levar a horas de conversa, trouxe como tem sentido desafiador encontrar espaço e abertura para conversar sobre qualquer coisa, até mesmo com pessoas que expressam visões ligeiramente diferentes das nossas, como se só pudéssemos dialogar dentro da bolha que concorda com o mesmíssimo pensamento. Como se provocássemos uma intensificação dos filtros e dos algoritmos das ferramentas sociais que nos alienam cada vez mais. O papo seguiu longamente como de costume, e enquanto refletia sobre isso que estou escrevendo aqui me voltou à memória, reverberando em perguntas: Como esperamos criar coisas novas? Como podemos pensar de novas formas?

A impossibilidade de haver discordância nos limita ainda mais, nos afoga em nossa própria mesmice, nos entedia com mais de nós mesmos, nos previne do contato com outras visões, nos deixa imensamente seguros ao nos posicionar onde não seremos contestados e levados a reconhecer erros, a reformular nossas próprias teses, nossas crenças, nossas visões de mundo. Nos retira o direito à filosofia, ao não-saber e consequentemente ao aprendizado. Não nos oferece uma fonte de nutrição e inspiração diversificada e isso nos esgota. A monocultura da mente é uma expressão que conheci há alguns anos através da cientista, ativista e ambientalista indiana Vandana Shiva e que desde então tem feito sentido para descrever o enclausuramento ao qual estamos nos submetendo.

Nós, que vivemos nesses ENTRES, ao nos esforçamos para pertencer um pouquinho mais aqui e ali, abrimos mão de nossa singularidade sagrada impressa em nossos rostos, vozes, consciência e percepção da realidade. Assumir o pertencer-múltiplo é libertador, nos desenclausura ao nos despir dos julgamentos que excluem e segregam, e nos oferece mais criatividade, mais pluralidade pra criarmos o nosso próprio jeito, nossas palavras e expressões, nossa linguagem e autenticidade, e consequentemente nos permite celebrarmos nossas diferenças como sinal da imensa riqueza em nossa existência.

Estar entre é não excluir nenhuma possibilidade de ser, de pensar, de leitura da realidade, e a partir disso poder considerar a complexidade das coisas, a complementaridade dos opostos, unindo paradoxalmente o dentro e o fora, o sim e o não, o bom e o ruim, e assim poder imaginar novas formas de estar presente e realizar mudanças para viver o que a vida nos apresenta nesse momento de transição, de mudanças climáticas, de caos e degeneração política em que nos encontramos.
Tenho aprendido a gostar desse ENTRE onde constantemente me encontro, diminuindo os esforços para encaixar perfeitamente nas definições pré-concebidas sobre as possibilidades que temos de ser, de existir. Isso de nós humanos querermos pertencer a algum recorte social de aceitação baseado em acordos normativos criados pelo homem-padrão (e provavelmente a partir de um pensamento colonizador), nos faz perder a percepção ainda mais ampla de pertencimento, aquele que nos integra à todos os seres entre o céu e a terra, a tudo que é vivo neste planeta. De repente, “não pertencer” pode surgir como um sinônimo de liberdade para fluir em um novo-eu que renasce a cada manhã e a todo momento.

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