O tempo não dança as mulheres

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O tempo não dança as mulheres

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Na segunda, 13 de outubro, iniciei, despretensiosa, durante o trabalho, a leitura do livro “Parece que piorou” da Bruna Maia. A capa, com uma mulher sentada com as pernas abertas segurando uma caneca acompanhada de uma gato, celular e notebook na tomada, tomaram os meus olhos diante da prateleira repleta de títulos que “quero achar tempo pra ler”. O tempo. Esse objeto moldado por homens para devorar mulheres. E devoram, dia a dia, pouco a pouco. Me sinto engolida. Estou dentro de sua boca e ele me mastiga devagar, como se sorvesse os meu calos com prazer. 

Fiquei surpresa quando encontrei nas primeiras páginas um amontoado de afazeres que pensei serem anotações minhas e bem particulares, daquelas que anoto na cabeça pra não correr o risco de alguém ler. Mas não. Estamos todas tentando. Tentando estar em forma, tentando estudar, tentando trabalhar, ganhar dinheiro e comer bem, sair de vez em quando, evitando batata frita, bebendo suco sem açúcar, café sem açúcar. Tentamos dar atenção suficiente aos amigos, aos pais, ao parceiro, ao cachorro, ao vizinho, aos desconhecidos na fila do posto de saúde. O tempo aperta delicadamente as mãos dos homens enquanto nós, somos levadas, puxadas pela mão com violência. Não dançamos. Balançamos freneticamente as mãos, os pés, os olhos, a boca e nem respiramos. Quando nos damos conta, a música parou e não sabemos da letra, da história. E sufocamos, por não poder respirar. Morremos. A flor que não regamos dá sinais. Folhas amarelas, casa triste.

Estamos fadadas ao cansaço, à culpa, à indiferença. Não se sabe o que fazer com as mulheres. 

Não sabemos. Não queremos saber, ainda que saibamos. Nossa cantiga é miúda. Nossos versos caminham estradas e rodovias, campos, cancelas, riachos, navegamos o ar ainda que o abate lento nos impeça de cantar alto. Ainda cansadas, porque fazer música no caos é suturar a pele  ainda que a performance renda aplausos. 

Mas quem está na plateia?

Parece que piorou é um livro que me atravessou no momento exato de uma caminhada. Eu estava exausta. Talvez precisasse saber do óbvio que me escapa, que escapa a todas nós. 

O óbvio não é óbvio. Enxergar-se é um mecanismo de cura. 

Os outros nos veem, num desenho esboçado às pressas, sem cor. O mundo máquina. Os outros. Os homens.

O mundo não nos salva, um livro não nos salva. Nós nos salvamos. Dia a dia. Pouco a pouco. Banhadas pela saliva do tempo. Estendendo a roupa no varal, fazendo poesia. 

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